10!
Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.
Estava eu ontem a escrever a crónica para este espaço quando decidi fazer uma pausa para ver o Benfica. Ia bem lançado, já a meio do texto, a largar opiniões fracturantes sobre a greve dos enfermeiros como se percebesse muito do assunto, como fazem os comentadores a sério, mas depois aconteceu aquilo. 10-0. DEZ a ZERO! 10! E pronto, não consegui pensar em mais nada. Na verdade, ainda não consigo.
Sim, eu sei que isto é um espaço dedicado à cultura e às artes, um local onde se fala de cinema francês, literatura russa, se discute a importância do Conan Osiris (inserir risos), a importância do pessoal que se irrita com Conan Osíris (inserir risos com aplausos) ou se intelectualiza a obra do Conan Osiris (inserir risos, aplausos e aquela cena do “Annie Hall” em que o Allen goza com o pedante professor de Columbia na fila do cinema. Sim, estou a gozar com intelectuais indo buscar uma cena do Woody. Meta-intelectualidade. Fortíssimo.), mas aquilo que se passou no Estádio da Luz foi mais artístico do que metade das obras publicadas na última década e fez mais pela cultura do que qualquer ministro que tivemos no cargo. Não acreditam? Vejam aquela jogada aos 31 minutos da partida e digam-me lá se o Baryshnikov algum dia dançou assim. Portugal não tem hábitos de leitura? Confiram quantos “A Bola”, “O Jogo” e “Record” se venderam hoje. Até eu comprei!
Há muito este medo de falar de futebol, porque parece pouco. Pouco sofisticado, pouco relevante, pouco académico, mas hoje eu é que estou pouco, pouco importado com o que vocês acham. Aliás, estou-me pouco importando para tudo. Os enfermeiros estão em greve? OK. Se morrer alguém morre depois de ter visto isto, de ter uma história para contar aos netos. Vai ter é de ser por escrito, mas fica o testemunho. O Dia dos Namorados está aí à porta e não tens ninguém com quem ir a um restaurante pagar 50€ por um prato que no dia anterior custava 7? Que se lixe! O Samaris também esteve metade do ano sozinho e ontem deu mais abraços em 62 minutos do que um casal no último semestre, há esperança! A violência doméstica já matou 9 mulheres em Janeiro? Estou-me a marimb…. Quer dizer, aqui não. De facto isto é absurdo e alguma coisa tem de ser feita, seja o aumento de penas, seja uma nova abordagem das forças de segurança a este tipo de denuncias, seja a sensibilização desde tenra idade para este tipo de crime. Mas até aqui isto ajudou. Sim, eu sei que isto pode ser má onda, mas tenho para mim que este 10-0 fez mais pelo fim da violência doméstica do que a marcha silenciosa. Pelo menos a curto prazo. (Depois de sacar um Baryshnikov, pau! Humor com estereótipos ultrapassados. Sou muito transversal.)
Mas mais do que estar nas nuvens e azoado com este resultado, estou grato. Grato porque este jogo fez-me perceber mais sobre a minha essência do que todas as sessões de terapia que fiz até hoje. Estava 8-0 quando o Rafa falha um golo fácil. 8-0. E mesmo assim, aquando do falhanço, dei por mim a dizer “isto é inadmissível! A falhar assim não dá, não ganhamos nada!”. Estava 8-0, repito. E foi neste momento que percebi que, por mais que tenha, por mais que faça, por mais que ganhe, nunca vou estar contente. Vou querer sempre mais, mais trabalho, mais amor, mais desafios e, acima de tudo, ser melhor. 8-0 não me chega, nem no campo nem na vida, preciso do 10. E ao perceber isto, pude finalmente descansar, porque agora sei que o vazio que às vezes sinto, a falta de entusiasmo que me assola mesmo quando cumpro um objectivo, é só parte da minha personalidade e não uma doença estranha que me vai transformar num serial killer, o que me deixa contente porque tenho tendência a desmaiar quando vejo sangue. Afinal, isto é só uma parte de mim que, tal como o meu clube ontem, só se vai dar por satisfeita quando o árbitro apitar para o fim do meu jogo e eu estiver a ganhar por 10-0. A mim próprio. Ou isso, ou estou a dar profundidade a esta goleada apenas para parecer menos fútil. É capaz de ser a segunda, mas a primeira enquadra-se melhor no meu estilo.
Para terminar, uma palavra para um dos grandes nomes do futebol português, o enorme Fernando Chalana, que ontem foi homenageado na Luz. Corre o rumor de que estará com Alzheimer, uma doença terrível e que também corre na minha família aumentando bastante as hipóteses de eu a vir a ter também, o que é chato, mas pode ser que me esqueça.
Chalana: podes um dia esquecer-te de quem és, mas milhões irão sempre recordar o teu nome e isso sim, é conquistar a imortalidade.