“20 000 Espécies de Abelhas”: um filme sensível e ternurento sobre identidade e crescimento
Este artigo pode conter spoilers.
20 000 Espécies de Abelhas é a primeira longa-metragem da realizadora basca Estibaliz Urresola Solaguren, estreou na 73.ª edição do Festival de Cinema de Berlim, onde recebeu o Urso de Prata de Melhor Performance, atribuído a Sofia Otero (com apenas 9 anos), e é um filme sensível e ternurento sobre identidade e crescimento, que em nenhum momento necessita de recorrer ao drama excessivo, nem a moralismos, para alcançar profundidade no enredo.
O filme terá a sua estreia nas salas de cinema portuguesas dia 20 de Julho, no entanto, é possível descobri-lo no Cinema Nimas, em Lisboa, dia 17 de Julho, numa sessão que conta com a presença da realizadora.
Ane (Patricia López Arnaiz) é mãe de três crianças, entre as quais Aitor (Sofía Otero) de oito anos, cuja alcunha em basco é Cocó (em português Cacau). Durante umas férias passadas numa zona rural do País Basco, a criança ultrapassa uma fase de profundo questionamento sobre a sua identidade de género. “Sendo rapaz”, Aitor sente-se rapariga, e, ainda que Ane insista que “não existam coisas de menino ou menina”, as dúvidas adensam-se, os pensamentos da criança acumulam e resultam em vários momentos de mágoa e conflito.
Após algumas conversas com a sua mãe, Lita (Itziar Lazkano), Ane apercebe-se que aquilo que encara como “uma sensibilidade especial” de Aitor é algo mais aos olhos dos outros, para os quais pensar sobre identidade de género é como discutir o “sexo dos anjos”. “No entanto, ela move-se” e Aitor ou Cocó, por necessidade, pois, como é dito pela sua tia-avó “algo sem nome não existe”, continua a sua procura por um nome que demora a surgir, até que aparece como qualquer outro, subitamente: Lucía; inspirado pela figura religiosa de uma santa castigada por preservar, acima de tudo, as suas convicções.
Os desassossegos da criança, da sua mãe, da avó, do pai, dos irmãos juntam-se, aos poucos, num bordado de inquietações tecido com sensibilidade e num enredo inconvulso, repleto de beleza e nostalgia, algo acentuado pela direção de fotografia, mérito de Gina Ferrer. A sua câmara capta, com destreza, a imensidão da infância e da incerteza em planos íntimos, quase sempre médios, próximos ou de pormenor. As paisagens rurais, que enquadram riachos e colmeias, permitem respirar fundo, desprender do olhar intenso do elenco, pintando em tons ténues com influência de realizadoras como Céline Sciamma. É também entre as colmeias, a aprender sobre apicultura, que Lucía parece estar confortável, junto da sua tia-avó, Lourdes (Ane Gabarain), por quem desenvolve especial apreço. Trocam-se enxames de pensamentos verdadeiros por zumbidos, na calmaria do verão do País Basco. Ane, por sua vez, trabalha na velha oficina do pai, na esperança de apresentar um projeto à escola para a qual concorre enquanto docente, mas, também ela, sente dificuldade em definir a sua identidade enquanto artista plástica.
Existem 20 000 espécies de abelhas e todas são especiais. A analogia à identidade de género é evidente, no entanto, o discurso do filme supera, em muito, esta premissa. A determinado momento, este deixa de ser um enredo sobre a procura de identidade e passa a ser sobre identidade de género definida, estabelecida, assumida e questionada, não pela própria Lucía, mas pelos que a rodeiam. 20 000 Espécies de Abelhas faz-nos pensar que, durante uma eternidade, nada somos. Depois, como uma faísca, num breve e espontâneo ato de renitência cósmica, nasce-se e, da mesma forma que não se pediu para vir ao mundo, também não se solicitou nome ou uma identidade. Esta última floresce-nos, estabelece-se e assenta-se com o tempo, mas há quem julgue que se forma, como um molde de barro, ficando-se, assim, opaco por dentro, e surge, por isso, a necessidade de nos deixar preencher com aquilo que esperam de nós. Já se queixavam as almas jovens e censuradas de Natália Correia e José Mário Branco:
“Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós”
O filme enquadra, ainda, entre um passeio de barco pelo leito do rio, uma ondulante problemática ontológica. Lucía pergunta aos avós o que é, afinal, a fé, ao que o avô responde tratar-se de algo tão profundo que apenas existe dentro de nós, mas aponta, ainda, que também aquilo que constitui o imaginário integra a realidade. Apesar da tenra idade, a pequena Lucía afirma ter compreendido a premissa que o avô referiu e torna-se óbvio, para o espectador, que ali não se fala somente de fé.
Existe no filme aquilo que se julga, a princípio, uma lacuna no argumento: o questionamento permanente da criança, algo excessivamente expositivo. Lucía coloca todas as perguntas “certas”, no entanto, o filme fecha-se nas respostas. A partir do momento em que as perguntas saem pela boca da menina, deixa de existir uma resposta para as mesmas. Esse mesmo questionamento é feito pelo espectador no decorrer no filme, trata-se de uma inquietação válida e tão profunda que, quando emerge à superfície dos diálogos, se torna desconcertante. Neste sentido, o filme desespera, tanto quanto as suas personagens, em fazer-se compreender, até optar por resolver-se num dulcíssimo e terno final que nos serve uma resposta em forma de aceitação.