2025: Lançadas as bases para ser ‘o ano #metoo’ nas artes em Portugal
A denúncia de violação feita publicamente por uma artista contra um pianista impulsionou, em novembro, outras pessoas a partilharem histórias de assédio e abusos no meio artístico português, mas é incerto o desfecho destes casos.
O seu desenvolvimento, porém, pode fazer de 2025 o ano do #metoo nas artes em Portugal.
A DJ Liliana Cunha, conhecida no meio artístico como Tágide, que fez no início de novembro uma denúncia nas redes sociais identificando o pianista de jazz João Pedro Coelho como o alegado agressor, acredita que sim.
“Vai claramente, sim [ser o ano do #metoo]. Acho que construímos as bases para isso. Ainda há muitos casos a serem trabalhados, estamos a ultimar a recolha de testemunhos fiáveis e a investigação concreta. E também estamos a incentivar as vítimas a fazerem queixa, o que está a dar resultados”, referiu, em declarações à Lusa.
No espaço de mais ou menos um mês, Liliana Cunha contabilizou cerca de 170 denúncias de assédio, abuso, violação e agressão, relativas a mais de 40 pessoas do meio artístico, a larga maioria homens. De todas as denúncias, dez passaram a queixas apresentadas às autoridades.
A artista acredita que este número continuará a crescer. É tudo uma questão de conseguir que as vítimas “se sintam mais seguras” e fazer com que tenham “literacia suficiente sobre o que fazer com isso”, algo que para Liliana Cunha “também legitima o movimento”.
A primeira das dez queixas apresentadas foi a de Liliana Cunha. Depois de denunciar publicamente o seu caso, a artista apresentou queixa na PSP contra o pianista João Pedro Coelho, acusando-o de violação e ‘stealthing’ (não-utilização ou retirada de preservativo sem consentimento do/a parceiro/a), numa situação alegadamente ocorrida em 2023.
Pouco depois de a denúncia ter sido tornada pública, o músico refutou as acusações e reclamou “total inocência” num breve comunicado nas redes sociais.
Este caso está agora em investigação no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa.
Na sequência da denúncia de Liliana Cunha, foi lançada em 16 de novembro uma petição ‘online’, com os signatários a pedirem uma alteração da lei portuguesa para criminalizar o ‘stealthing’ como “uma violação do consentimento sexual”, de modo a que as vítimas tenham “um processo claro para oficializar a denúncia e buscar justiça”.
Em quatro dias foram angariadas as 7.500 assinaturas necessárias para que seja discutida no Parlamento.
A nível político, o partido Pessoas Animais Natureza (PAN) entregou um projeto-lei para que o ‘stealthing’ seja considerado crime.
Embora não seja a primeira vez que vêm a público denúncias relativas a pessoas das Artes em Portugal, esta é a primeira vez em que surgem várias num mesmo momento em relação a diferentes pessoas.
Embora numa escala menor, o que está a acontecer remete para um movimento coletivo espontâneo de partilha de denúncias surgido em 2017 nas redes sociais, e de forma geral na Internet, com a designação agregadora ‘#metoo’ (#eutambém, tradução para português).
Aquele ‘hashtag’ começou a ser usado nos Estados Unidos para identificar publicações nas quais eram feitas denúncias de casos de assédio e abuso sexual, na sequência de dezenas de acusações contra o produtor norte-americano Harvey Weinstein, que envolveram atrizes como Gwyneth Paltrow, Ashley Judd e Angelina Jolie, reforçadas por investigações do jornal The New York Times e da revista The New Yorker.
O movimento estendeu-se a outros países como Reino Unido e França. Entre os alegados agressores surgiram realizadores, atores, humoristas, maestros, fotógrafos, cantores e diretores de empresas ligadas às artes e espetáculos.
Em Portugal, este ano, quando as primeiras denúncias vieram a público, a associação Plateia lamentou a inexistência de uma plataforma de recolha de queixas e de um sistema de “proteção eficaz” das vítimas, defendendo uma mudança estrutural, que ajude na prevenção e promova alterações legislativas.
Na mesma altura, outras associações contactadas pela agência Lusa manifestaram preocupação e apontaram a necessidade de reforço de medidas.
A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) apelou para que as denúncias fossem levadas a sério e que não desaparecessem “na espuma dos dias” e o Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, Audiovisual e Músicos (Cena-STE) pediu uma Autoridade para as Condições do Trabalho “muito mais capaz e muito mais forte”.
A Associação Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento (MUTIM) e a Associação para as Artes Performativas em Portugal (Performart) também pediram canais oficiais, apropriados e eficazes para denúncias de abusos e assédio no setor.
Em 15 de novembro, o Hot Clube de Portugal (HCP), onde João Pedro Coelho chegou a dar aulas, anunciou ter criado uma comissão de inquérito interna para “apurar situações que possam ter ocorrido” de abuso ou assédio e que envolvam pessoas com ligação à instituição.
Desde então, as partilhas de testemunhos, nas redes sociais, de denúncias de casos de violação, abuso sexual e assédio no meio artístico continuaram a aumentar, ultrapassando o meio da música, e em particular do jazz, estendendo-se também a outras áreas, do teatro à dança, passando pela literatura e o cinema.
A investigação dos dados recolhidos ao longo do último mês pode fazer de 2025 o ‘ano #metoo’ nas artes em Portugal.