O manual universitário ‘Direito do Trabalho I’, de António Menezes Cordeiro

por João Pinho,    28 Outubro, 2018
O manual universitário ‘Direito do Trabalho I’, de António Menezes Cordeiro
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Apesar de o politicamente correcto ser um tema tanto interessante como cansativo, evocá-lo como argumento para proferir disparates ainda é mais. Vamos, portanto, debater as palavras escritas no manual universitário Direito do Trabalho I, do professor catedrático António Menezes Cordeiro da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa que, apesar do título académico, traz consigo diversos valores obtusos.

“A vida íntima de uma pessoa pode, em qualquer momento, ser conhecida; e sendo-o, pode prejudicar a imagem de uma empresa. Assim, como exemplos: para quem pretenda lidar com valores, melhor será que não tenha cadastro e que não esteja insolvente; um homossexual não será a pessoa indicada para vigilante nocturno num internato de jovens rapazes; uma recém-casada não pode ser contratada como modelo; um alcoólico fica mal num bar, o mesmo sucedendo com um tuberculoso numa pastelaria ou com um esquizofrénico num infantário. Não vale a pena fazer apelos ao politicamente correto, nem crucificar os estudiosos que se limitem a relatar o dia-a-dia das sociedades: o Direito vive com factos e não com ideologias”, pode ler-se no manual.

Para além dos diversos exemplos fracos e superficiais, muitos são contrários à própria Constituição, algo estranho vindo de um professor de direito. Mas antes de tentar enumerar os que mais me chocaram, o que realmente despertou a minha atenção foi a justificação dada – meia vestida de desculpa – relativamente à obra publicada em como “não tem qualquer conteúdo sexista”. Realmente não chega a ser sexista, até porque consegue colocar em causa o emprego de uma pessoa devido à sua orientação sexual como também por uma pessoa ter uma doença fatal, como é o caso da tuberculose. Como é que um professor de Direito consegue ser tão destemperado nas comparações e nos casos em estudo? Consegue disparar em tantas direções, sempre com a desculpa de se tratarem de casos do quotidiano com os quais temos de conviver.

Os casos específicos seguintes, hilariantes mas não menos preocupantes, só poderão ser analisados, na minha opinião, com um toque de sarcasmo.

“(…) para quem pretenda lidar com valores, melhor será que não tenha cadastro e que não esteja insolvente (…)” — o que se pode concluir desta afirmação é que um ex-criminoso não pode voltar a trabalhar em determinadas áreas e realmente ser reintegrado na sociedade, uma das mais difíceis e importantes funções do estado. Poderia ser debatido, de forma séria, se alguém que cometeu crimes na alta finança poderia voltar a ser, por exemplo, banqueiro.

“(…) um homossexual não será a pessoa indicada para vigilante nocturno num internato de jovens rapazes (…)” — este exemplo demonstra que existe, pelo menos na cabeça do professor, mais do que uma definição de homossexualidade. Na minha (cabeça) uma pessoa homossexual gosta de outra pessoa do mesmo sexo. E é uma orientação sexual que se distingue bastante, por exemplo, do conceito de pedofilia. Por momentos, pensei que se tratasse de uma crítica à Igreja.

“(…) uma recém-casada não pode ser contratada como modelo (…)” — esta é mais rebuscada e, por isso, mais difícil de criticar. As recém-casadas têm alguma característica física ou psicológica que as distinga de mulheres que não estejam num matrimónio ou que o estão há um período considerável de tempo? São mais ou menos bonitas? Estarão mais ou menos distantes dos padrões de beleza da nossa sociedade? Supõe-se que o autor pretende dizer que existe uma elevada probabilidade de uma recém-casada decidir engravidar e, por isso, colocar em perigo o seu emprego e também a empresa que a contratou? Uma lógica muito estranha.

“(…) um alcoólico fica mal num bar (…)” — um alcoólico não fica nem deixa de ficar mal. Pode é dar-se o caso de essa pessoa não poder trabalhar, por falta de capacidades motoras. De forma irónica, um alcoólico fica extremamente bem num bar, numa discoteca ou numa tasca.

“(…) o mesmo sucedendo com um tuberculoso numa pastelaria ou com um esquizofrénico num infantário (…)” — aqui surgem duas situações reais que são colocadas em contextos reais, supostamente, com o objectivo de desdramatizar a temática em questão e, assim, todos compreendermos do que se discute sem grandes palavras caras muito comuns no Direito. Um tuberculoso, infelizmente, não poderia trabalhar só numa pastelaria, tendo em conta que se trata de uma doença transmissível por via aérea.

Talvez o maior problema destes exemplos é serem tão específicos que dificilmente retratam uma realidade da nossa sociedade e, assim, consigam dar início a um verdadeiro debate.

O que se pode retirar desta enumeração é que as universidades e politécnicos deste país têm nos seus quadros pessoas muito diversas: umas com pensamentos relativos à sociedade bastante progressistas e que até têm uma voz activa; outras claramente com opiniões que pertencem, por exemplo, ao nível da homofobia e do puro sexismo, como também da pura estupidez. Porém, isto não significa que as universidades e os seus devidos reitores e presidentes devam filtrar estas pessoas. Não ponho em causa o profissionalismo da pessoa ou a qualidade dos conhecimentos de Direito. Ponho, sim, em causa o valor como professor. Na realidade, um professor é mais do que um debitador de matéria. Da mesma forma, a universidade não serve para criar robôs que vomitam matéria. O ensino superior e as instituições que o representam servem também para criar cidadãos, independentemente da área ou curso que estudem. E este senhor chocou exactamente com os valores que devem ser transmitidos às novas gerações. Por isso, este tema deve ser minimamente debatido, porque não se trata de umas ideias proferidas pelo Zé da esquina, mas sim (e volto a repetir) por um professor catedrático de uma faculdade com renome.

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