Bons Sons: muito mais do que um amor de Verão
Chegou ao fim a 9.ª edição do Bons Sons, o festival que, ano após ano, enche as ruas da aldeia de Cem Soldos, a alguns quilómetros de Tomar. Há muito mais no Bons Sons do que “apenas” música. Há um exemplo assinalável do que é o empreendedorismo social aplicado ao desenvolvimento local, promovendo melhores condições para os que vivem em Cem Soldos e fomentando um espírito de cooperação transversal a todos os habitantes de Cem Soldos. Bons Sons será sempre mais do que 4 dias de música, é um projecto de futuro, de generosidade e de responsabilidades sociais.
Nestes quatro dias, vimos muitas bandas que não conhecíamos, mas que depressa começámos a seguir nas redes sociais, conhecemos muitas pessoas, vimos crianças, idosos e adultos de muitas idades numa alegre e incessante conversa. Vimos ícones da infância de muitos, vimos as próximas referências da música portuguesa e vimos as bandas que habitam nos tops de música há já algum tempo. Foram mais de 50 actuações previstas e várias actuações surpresa, das quais destacamos as seguintes (sem demérito de quaisquer outras).
Foi no primeiro dia que assistimos a 3 concertos que ficarão, certamente, na história do Bons Sons e dos milhares de pessoas que por lá passaram, nomeadamente Salvador Sobral, Selma Uamusse e Slow J.
Salvador Sobral é muito mais do que o músico que ganhou a Eurovisão. A meses de entrar para o estúdio para gravar o seu segundo álbum de originais, Salvador Sobral surgiu em palco de cabelo cortado, quase irreconhecível mesmo para as muitas centenas de pessoas que o esperavam, e com os parceiros de sempre, Júlio Resende no piano, André Rosinha no contrabaixo e Bruno Pedroso na bateria. Foi um concerto de jazz descomplicado e sem presunções, com minutos de um muito competente freestyle no piano de Júlio Resende. Percorremos músicas do primeiro álbum, “Excuse Me”, muitas vezes entoadas pelo público, ouvimos o bolero de “Cerca del Mar”, lançado há poucas semanas e “Mano a Mano”, com poema de Maria do Rosário Pedreira. Há uma profundidade na musicalidade de Salvador Sobral que não conhecíamos, uma dimensão instrumental que nos cativa e surpreende a cada minuto que passa. Ouvimos “Amar pelos dois” pela enésima vez, arrepiámo-nos novamente e enchemo-nos de orgulho naquele rasgo de bom gosto do povo europeu que nos deu a vitória naquele concurso. Salvador Sobral voltou ao palco para tocar uma música porque apetecia-lhe tocar aquela, especificamente. Sai-lhe “A Case of You”, de Joni Mitchell, na – não estamos a exagerar – melhor versão que ouvimos deste belíssimo tema (sim, também adoramos a versão de James Blake). Terminou com outra versão, desta vez “Anda estragar-me os planos”, de Joana Barra Vaz. Salvador Sobral é uma das futuras grandes referências da música e que o diga a senhora que estava à nossa frente, que provavelmente nunca tinha ouvido jazz e que, na superioridade dos seus 70 e muitos anos, passou o concerto de lágrimas nos olhos e mãos juntas no peito. Como muitos de nós.
A serenidade que nos ocupou o corpo e a mente transformou-se numa incontrolável vontade de dançar ao som dos ritmos africanos (de origem moçambicana) de Selma Uamusse, que nos quer ensinar algumas coisas sobre Moçambique. O desafio é aceite e a marrabenta toma conta da praça de Cem Soldos. A música de Selma Uamusse representa o melhor que ouvimos de música do mundo. É gospel, é jazz, é afrobeat, é rock, é uma amálgama de influências dos vários projectos pelos quais tem passado e é único. Selma Uamusse põe todo o público a dançar, descalço, dança em palco com crianças que foram desde a zona de Lisboa até Cem Soldos e depois com o público, na plateia e em palco. Isto porque não há baias de separação na celebração da música de Selma Uamusse. Ela é a ponte entre duas culturas, a portuguesa e a moçambicana, e demonstra que temos muito em comum e nada melhor do que fazê-lo numa pequena aldeia do interior do país.
Quase a fechar a primeira noite, Slow J subiu ao palco Zeca Afonso para a estreia e triunfou no Bons Sons. Apesar do desconhecimento partilhado pelo artista relativamente ao festival, o público vibrou com total conhecimento para o que tinha ido ver. Slow J é um nome imprescindível na actualidade nacional, que corresponde à ânsia de uma nova geração pós-boom do rap nos anos 90 e que, hoje em dia, tem acesso diário a inúmeros artistas, nunca estando realmente satisfeito. Neste dia 9, correspondeu e ultrapassou até todas as previsões que podiam ser feitas, com um beat estrondoso e único, nunca sozinho, sempre próximo do público.
O rap é mais do que o puritanismo das rimas. Como muitos estilos musicais, senão todos, não depende só dele próprio e consegue conjugar-se, de forma incrível, neste caso, com o rock e com o jazz. Com ou sem guitarra, Slow J é acompanhado constantemente pelo maestro (não é difícil de reparar) na bateria (Fred Ferreira), um incrível músico que compreende na perfeição o lado mais impulsivo e imprevisível do vocalista. Ao lado deles, um artista completo nas teclas e na guitarra (Francis Dale), que não fica na sombra dos outros: acompanha, eleva a voz da estrela, improvisa com o baterista e faz solos de guitarra que fazem o vocalista esboçar um sorriso sincero. Incisivo e melancólico, fala em rimas da fome, da solidão ou da arte, sempre com a mesma tenacidade e agressividade tão animal como humana. Os sentimentos e temáticas são universais de um homem actual que não tem problemas em dizer “merda” ou “shit”, em tocar guitarra ou partilhar o que sente próximo do público.
Ao segundo dia, Sara Tavares. Só a memória é que nos traz os tempos da «Chuva de Estrelas» e do «Chamar a Música», Sara Tavares não podia estar mais diferente e a miúda que interpretou Whitney Houston há bem mais de uma década transformou-se numa artista cada vez mais próxima do gabarito da cantora que uma vez imitou. Sara Tavares explora as suas raízes e língua caboverdianas, explora cada ritmo, cada movimento e os limites (que parecem inexistentes) da sua belíssima e versátil voz. A meio, depois de “Brincar de Casamento”, um veterano do Bons Sons pede em casamento a sua namorada, que conheceu há 6 anos no festival, e o público vibra, ri e sente todos os amores de Verão que ali começaram.
No palco Zeca Afonso, os Mirror People protagonizaram um regresso ao tempo do “disco” e da pista de dança. Frases catchy em inglês que naturalmente acabam por ser repetidas pelo público e, acima de tudo, muito ritmo, sempre. Estas são as principais características da música desta banda que há noite tocou no palco Zeca Afonso. Umas músicas cheiram a Verão, outras pedem uma dança a dois (algo mais romântico), perfeitas para um mar de gente que entrou no festival: amigos, famílias e casais de todas as idades.
Como se as surpresas não nos bastassem, no terceiro dia, assistimos a Zeca Medeiros, um actor, poeta e músico açoreano que subiu ao palco Zeca Afonso. Zeca Medeiros é um artista completo de uma geração que viveu o 25 de Abril, a guerra colonial, quando um artista era um actor de movimentos de mãos expressivos, poeta de canções e revolucionário. Depois de um concerto especial pela tardinha que já tinha chamado a atenção de algumas pessoas que passeavam pelas ruas do festival, chegou a hora do concerto e aí aprendeu-se imenso, músicas e não só. Acima de tudo, houve uma partilha sincera de um conhecimento quase ancestral, cheio de referências literárias e políticas. Medeiros é o avô que todos queríamos ter: brincalhão, cheio de energia, culto e esboçando sempre um riso e um carinho sincero para com o público. Cantou estórias rodeado dos seus companheiros e com convidados especiais (João Afonso e Filipa Pais), tendo como mote o “cachimbo da paz”.
No terceiro dia, tivemos a banda portuguesa mais americana de sempre, Sean Riley and the Slowriders. Durante o concerto, perfeito, ouvimos temas que jurámos serem de uma qualquer banda de rock americana, daquelas de esgotam estádios e são perseguidos por fãs aos gritos. São nossos e o público do Bons Sons agradeceram. Ouvi-los é segui-los por uma viagem pelas paisagens perdidas dos EUA ou, de uma perspectiva nacional, pelos campos do Alentejo tão grandes que ultrapassam o horizonte. Já no soundcheck, a voz do vocalista tinha-nos chamado a atenção. Parámos à sombra de uma árvore, ouvimos até acabarem e sentimos que tínhamos que garantir a nossa presença no concerto à noite e ambas as partes cumpriram a promessa: a nossa presença e a presença inacreditável da banda em palco.
No mesmo dia, o artista de meteórica ascensão, Conan Osiris. O que ele transparece é o que é, mesmo sendo uma amálgama de coisas: a rainha da noite, aquele que nos choca e que nos faz rir, aquele a quem é impossível ficar-se indiferente. Uma coisa é certa, para quem o conhecia ou não, houve festa num palco-altar, onde o público, extasiado, acompanhava as frases sobre as coisas mais mundanas da vida, mas que fazem todo o sentido serem ditas por Conan Osiris: borrego, barcos, lixo e celulite (ou celulitite).
Em certos espectáculos, o vocalista não é a única estrela do palco. Aqui, aparece João, dançarino, que, em cada música ou concerto, faz uma nova interpretação da diversidade sonora a que somos expostos. De forma natural, ele é um verdadeiro intérprete e descodificador. Ele demonstra-nos como se dança, em vários momentos acompanhado por Conan, numa verdadeira dança a dois. Sem preconceitos, o sentimento que passou para o público que aos poucos foi-se libertando das suas próprias limitações e o concerto termina, em modo de despedida, numa invocação à grande fadista Amália, numa ode à saudade.
Com o final do festival a aproximar-se, acorremos ao Palco Giacometti para quase não sair. Monday é o projecto a solo de Catarina Falcão, também conhecida pelo seu outro projecto, Golden Slumbers. Ouvi-la numa tarde de sol e muita animação, é um prazer e um conforto. A voz dela é de uma maturidade rara que não se limita ao estilo do folk, que já estávamos habituados a ouvir. De guitarra acústica na mão tocou no público, que a ouvia atentamente e em silêncio, mas que demonstrava sempre o seu contentamento com uma salva de palmas. A não-sobreposição dos concertos fez com que as ruas e janelas das casas da aldeia estivessem apinhadas para ouvir este concerto que já tínhamos apontado na nossa agenda. Não há muito mais a dizer. Quem lá esteve facilmente consegue relacionar-se com estas palavras, que não são ditas em vão.
À janela a ouvir Monday, estava Luís Severo, que atuaria no Palco Giacometti horas depois. Nunca se fala de mais de Luís Severo, mas por vezes as palavras escasseiam. É um dos melhores cantautores portugueses da sua geração e, enquanto percorre instrumentos à medida que interpreta os temas dos seus dois discos, “Cara d’Anjo” e “Luís Severo”, encanta o público que se acotovela numa encruzilhada que se revelou pequena demais para o seu talento. Termina com Primeira Dama, convidados em palco num concerto memorável. Na sua excentricidade e, ao mesmo tempo,na presença calma em palco, ele obriga-nos a estar atento às suas letras, porque há poesia nas suas palavras de amor que delicia quem o ouve. Nós estivemos na varanda do café que dava uma vista privlegiada para o palco e ficámos a sorrir de puro contentamento ao ouvir-los; o tempo passou sem nos apercebermos, é um excelente sinal.
Primeira Dama também subiu às escadas da Junta de Freguesia para acompanhar Lena d’Água em “Sempre que o amor me quiser”. Lena d’Água foi convidada por Primeira Dama para, com a banda Xita, interpretar os temas que a imortalizaram e nos criaram a mais bonita das memórias. Há muita ternura na Lena d’Água, muitas vezes injustiçada por uma indústria de memória curta, e é um prazer enorme vê-la em palco, com excelentes músicos, a interpretar temas com 20 ou 30 anos. Deste concerto, gostávamos de ver mais interacção de Lena d’Água nos temas de Primeira Dama, mas é uma parceria que não nos importávamos de voltar a ver várias vezes.
Ainda a Lena d’Água não tinha tocado e o palco Lopes-Graça foi empossado pelos Dead Combo. Há muita vida que pulsa neste duo de guitarras, desta feita acompanhado por bateria e contrabaixo. Quando Anthony Bourdain visitou Lisboa, foi recebido por Tó Trips e Pedro Gonçalves num pequeno bar do Cais do Sodré e não foi por acaso – os Dead Combo são uma referência no rock nacional. Porém, no concerto no Lopes-Graça, deram um concerto pouco convincente, onde não tocaram muitas músicas que verdadeiramente os representam, músicas que caracterizam a melancolia e nostalgia nacional (a riqueza na pobreza), ou uma tormente de emoções que, em concertos anteriores, já criaram moches e guitarras partidas com o suor dos artistas. Ainda assim, tocaram “Cuba 1970”, uma preferência pessoal e que soou tão bem como poderíamos imaginar.
O Bons Sons 2018 terminou com um DJ-Set/uma performance que durou até às tantas cheia de balões enormes de várias cores e um animador com cara de joker. Andou pelo palco e pelo público, numa correria frenética a puxar pelo pessoal que, após quatro excelentes dias de festival, ainda tinham energia para mais uma dança.
Para a memória, fica um festival que bateu records de espectadores e muitas actuações, ainda que não sejam referidas neste artigo, que demonstraram que a música portuguesa está muito bem e com muita saúde.
A equipa da Comunidade Cultura e Arte gostaria de agradecer à produção, equipa de comunicação e a todos os nossos colegas na sala de imprensa pelo carinho, boa disposição e amizade.
Artigo redigido por: João Pinho e Linda Formiga