Extramuralhas 2018: Leiria vestiu-se de preto
Nos dias 23 a 25 de Agosto, a cidade de Leiria recebeu mais uma edição do Festival Entremuralhas, este ano rebatizado de Extramuralhas devido à alteração de localização. Deixámos, provisoriamente, o castelo e descemos até ao centro da cidade, que se encheu de música alternativa, de cultura gótica e todos puderam vivenciar este acontecimento. Desde os mais novos aos mais velhos, desde os mais excêntricos aos menos excêntricos, desde os crentes aos descrentes (ou, quem sabe, futuros crentes). No Jardim Luís de Camões ocorreram várias performances, intervenções artísticas, não faltaram as barracas de mercado diverso, de comida, de bebida e dj sets ao longo da tarde e ao longo da noite na Stereogun. O centro de Leiria foi o palco do Festival. Perto de nós estava o castelo. A cidade vestiu-se de preto. E o preto, verdade seja dita, cai sempre bem. Tal como as tão afamadas letras de LEIRIA também as pessoas e a cidade se deixaram contagiar pelo preto. Entranhou-se na pele e não estranhámos. Pelo contrário, agradecemos.
Podemos afirmar, e todos os que assistiram dificilmente discordarão, que a abertura do Festival não poderia ter sido melhor. A banda germano-dinamarquesa Heilung, que significa “cura” em alemão, conseguiu enfeitiçar todos os que naquela noite se dirigiram ao Teatro José Lúcio da Silva. As suas músicas baseadas em textos originais e artefactos da Idade do Ferro e da Era Viking contam-nos, como eles próprios descrevem, uma “história amplificada do início da Europa do norte medieval”. E que história que eles contaram. Sim, foi mesmo isso que sentimos. Que nos contavam uma história de magia e horror, que assistíamos a uma cerimónia, a uma prece, com tambores, guerreiros, indumentarias tribais, ossos, amuletos, palavras indecifráveis, incenso, névoa, sombras projetadas na parede, um som e uma imagem tão imponente que nos inebriavam todos os sentidos. Olhando em redor víamos um público num êxtase crescente, louvando o que assistiam. Ao que viviam. “Where the Wild Things are”. Viajámos para um mundo estranho, selvagem que só existe no nosso imaginário. Fechando os olhos, sentimos que até o castelo estava lá.
Ainda digerindo o que tinha acontecido prosseguimos até à Discoteca Stereogun onde decorreu o concerto dos londrinos Sudden Axis Disorder. O trio de aspeto angelical provocaram-nos com um post-punk eletrizante que poderia ter sido mais contagiante. Gostámos, mas faltou energia para nos transportar com eles. Nem a música “She’s gone” o conseguiu.
No segundo dia fomos presenteados com um concerto memorável do alemão Christian Wolz no Museu de Leiria. O Pátio serviu de palco e a voz deste músico ecoou por todo o espaço. A sua voz peculiar, pura, versátil é levada ao limite. É o seu instrumento. A sua arte. É um acrobata da voz, que nos comove e em silêncio absoluto ouvimos e sustemos a respiração.
Às 21h os Ulver (lobo, em norueguês) aguardavam por nós no Teatro. Este nome soa bastante apropriado quando observamos a criatividade selvagem desta banda que se renova a cada trabalho. Surgida na década de 90, transitou inicialmente pelo black metal e folk metal, tendo mudado drasticamente a sua sonoridade com o passar dos anos, seguindo atualmente uma linha mais experimental bem presente no seu último álbum. Nesta noite testemunhámos um espetáculo multimédia impactante. O jogo de luzes contínuo iluminou a sala e ficou na retina. Os sintetizadores ricos, os vocais atmosféricos, que se deslocaram entre o encanto doce e o mistério arrepiante, ficaram no ouvido. O concerto terminou com o cover de “ The Power of Love” dos Frankie Goes to Hollywood.
Em espírito de festa chegámos ao Jardim Luís de Camões para acompanhar mais dois concertos. Primeiro atuou a banda espanhola Captains, que tem como vocalista a conhecida cantora alemã Fee Reega. Trouxeram-nos um som feroz, poderoso, sedutor, raivoso, intenso, implacável. A música “Heavy Metal Work” fez-nos abanar o esqueleto e aplaudir por mais. É de assinalar a energia contagiante da cantora que nos eletrizou do inicio ao fim. A entrega foi tal que a meio do concerto magoou-se no tornozelo e perguntou se havia um médico na plateia. Nem isso fez diminuir o seu desempenho terminando o espetáculo deitada no chão a bater com os saltos dos sapatos no chão ao ritmo frenético da música. Com adrenalina em alta vimos a banda Priest que se apresentaram num anonimato absoluto e um tanto perturbante. Os ex-músicos da banda sueca Ghost chegaram e arrasaram. O som eletrónico percorreu o jardim e manteve-nos atentos, curiosos, inquietos.
A noite terminou na Stereogun com a banda holandesa Bragolin. Apresentaram um post-punk refinado, uma estética marcante. O timbre peculiar da voz do também guitarrista Edwin van der Velde seduz-nos e conduz-nos, conduziu-nos ao longo do concerto.
Rápido demais chegámos ao último dia do Festival. O final da tarde foi passado no pátio do Museu de Leiria onde entrámos num estado de absoluta comoção ao som da banda francesa Rïcïnn. Laure Le Prunenec é a mentora deste projeto arrepiante. Possui uma voz poderosa, como a de uma cantora lírica, e sua extensão vocal sobressai e atrai. A componente emocional presente nas canções assombrou-nos. Emocionou-nos. Calou-nos tal era a nossa estupefação.
Esse sentimento de entorpecimento permaneceu no concerto dos Current 93. Este eclético grupo britânico de música experimental, trabalha desde o início de 1980. A banda foi fundada pelo David Tibet, poeta e artista e o único membro da formação inicial. Mal entrámos na sala de espetáculos fomos imediatamente envolvidos por uma atmosfera bastante bucólica. Um piano de cauda no centro do palco. Uma imagem de uma montanha projetada na parede. Uma música crescente que culminou num som industrial estridente e na entrada do David Tibet. Este apresentou-se descalço, de fato, boina e trazia um saco de algodão branco ao ombro de onde tirou o seu “livro de letras” para iniciar o concerto. A partir deste momento entrámos num universo criado pelo artista e pelos seus músicos. Um universo que nos falou de religião, de morte, de vida, de pintura, de poesia. Foram duas horas de puro deslumbramento. O público aplaudiu a banda de pé e eles concederam mais uma música, o novo single “Bright Dead Star” do último álbum que será lançado em Outubro. No ouvido ficou a frase “The Light Is Leaving Us All”. Mas naquele momento isso não aconteceu. Pelo contrário, sentimo-nos iluminados. Privilegiados.
Corremos para o Jardim para não perdermos o som vibrante dos Shortparis que tiverem uma performance irrepreensível. Esta banda experimental russa pôs toda a gente a dançar.
Das doze bandas que atuaram em Leiria, nesta nona edição do Extramuralhas, nove estrearam-se pela primeira vez em Portugal. Tudo isto é responsabilidade da Fade In – Associação de Ação Cultural que, como sempre, primou pela qualidade da programação. Venha a 10.ª edição, porque esta já deixa saudades.