“The House with a Clock in its Walls”: um trauma para crianças
Ao ver o último filme de Eli Roth, The House with a Clock in its Walls (2018), podemos imaginar a discussão que terá havido entre os seus produtores quanto à sua escolha para realizador. Por um lado, o argumento apresenta alguns traços de filme de terror, género no qual Roth já demonstrou a sua proficiência (aparentemente, Spielberg aconselhou-o explicitamente a fazer o filme assustador), ao qual se soma o facto de ter mostrado tato com modelos de produção de estúdio. No entanto, uma das caraterísticas que torna o seu cinema tão interessante e singular é a forma oblíqua com que faz política, algo bastante patente no seu outro filme lançado este ano, o brilhante Death Wish (2018), que levou a interpretações completamente opostas às mensagens que Roth tem vindo a desenvolver com as suas obras e lhe valeu justas acusações de “mau gosto”. Este caminhar na fronteira entre a propagação e a crítica de algo é desaconselhável num filme dirigido a públicos infantis, aos quais falta a capacidade crítica para discernir uma da outra, razão pela qual se tende a optar por formulações fabulares de moralidade a preto e branco, ao invés de perigosas expedições por acidentados terrenos em variados tons de cinzento.
Efetivamente, este é provavelmente o filme mais linear e menos transgressivo que o controverso realizador americano já assinou, embora não por falta de inspiração, pois surge como fruto de uma eficaz adaptação de discurso. O filme conta a história de Lewis, um rapaz que, após a morte dos pais, vai viver com o seu tio, que mais tarde descobrimos ser um feiticeiro. A peculiaridade de Lewis permite uma separação de duas narrativas que, não obstante se centrarem em espaços diferentes e por algum tempo se desenvolverem separadamente, se ecoam: na escola sofre uma turbulenta adaptação a um ambiente novo onde as normas sociais o marginalizam; em casa do tio a idiossincrasia é um valor incentivado e celebrado e assim que Lewis descobre a magia, esta torna-se um espaço de refúgio para ele. Esta dualidade que equivale a individualidade ao extraordinário é bastante comum na cultura infantojuvenil, encontrando eco, nomeadamente, nos livros e filmes da saga Harry Potter. Mesmo ao percorrer caminhos familiares, o espetador atento é recompensado com pequenas guloseimas cinematográficas e as cenas passadas na escola pulsam com vida, em parte graças ao excelente trabalho que é feito com os jovens atores, cuja expressividade é refrescante numa indústria onde crianças costumam desempenhar o papel de “criança”. Conquanto estes elementos estejam presentes, sobre a primeira metade do filme paira uma sensação de segurança, de estar a ver um filme que tudo faz bem, mas em nada excele, desde o humor ao terror. Salvo um ou outro momento (a sequência com as abóboras destaca-se), esta falta de ousadia acompanhará parte da execução do filme igualmente durante a segunda metade, contudo aí surge a afirmação de um discurso ideológico que lhe dá um novo ímpeto.
O conflito que põe em risco o mundo – como não poderia deixar de haver, para que o azarão o salve – emerge aquando da ressurreição de um feiticeiro malvado chamado Isaac Izard que, traumatizado após testemunhar as atrocidades da Segunda Guerra Mundial, determina-se a fazer o tempo voltar atrás, até ao início do universo, para apagar todas as maldades cometidas pela humanidade. É Lewis quem leva a cabo esta ressurreição, em parte por o seu único amigo se revelar interesseiro (uma reviravolta que, elegantemente, de forma alguma é prenunciada), mas sobretudo por ter sido ludibriado através da exploração do seu próprio trauma – a perda dos pais. Existe uma terceira personagem caraterizada pelo trauma da morte: A Sra. Zimmerman, interpretada por Cate Blanchett, é uma feiticeira que perde os seus poderes após a perda da filha. Há poucos signos tão claros como as palavras e, como tal, Roth serve-se delas para enfaticamente apresentar a solução: “diz adeus”. Efetivamente, tanto Lewis como a Sra. Zimmerman ultrapassam os seus traumas familiares e são assim capazes de encontrar uma nova família, ao invés de Isaac Izard que se deixa consumir pelo rancor.
Sendo The House with a Clock in its Walls uma declarada singularidade na filmografia de Eli Roth, não deixa, no entanto, de ser relevante colocar a obra em diálogo com os seus trabalhos anteriores. O discurso sobre a exploração do medo alheio por demagogos mal-intencionados é absolutamente atual e, nesse sentido, o engajamento com a contemporaneidade mantém-se constante – ainda que neste caso surja através do tratamento de uma temática intemporal. Este difere dos seus restantes filmes pela forma de tratamento, consequência direta da adaptação do discurso a um público mais jovem: a já referida formulação fabular faz Roth trabalhar num modo especialmente abstrato, estando muitos elementos representados pelos mais simples denominadores comuns – o que não é mau. The House with a Clock in its Walls afirma-se, no entanto, como um dos mais inteligentes e mais bem conseguidos filmes infantis dos últimos anos, ao qual infelizmente faltou o carisma que a filmes semelhantes rende o estatuto de clássico, mas não me parece que isso advenha diretamente da sua cerebralidade (estou lembrado de uma citação de Barthes: “[Brecht] era hostil em relação à Fotografia, devido (dizia ele) à fraqueza do seu poder crítico, mas o seu teatro nunca pôde ele próprio ser politicamente eficaz devido à sua subtileza e à sua qualidade estética.”), pois o filme conserva, apesar de tudo, alguma leveza. No mínimo, ele aponta um caminho e gostaria de ver mais filmes a seguir o seu exemplo.