‘Raiva’: o mergulho de Sérgio Tréfaut na realidade alentejana dos anos 50
Para quem não conhece o realizador lusófono, Sérgio Tréfaut especializou-se a contar histórias diversas do nosso país. Fê-lo através de documentários que exploravam a realidade das comunidades minoritárias na capital, Lisboetas de 2004, até ao conto alentejano Alentejo, Alentejo de 2014, este último distinguido com o Prémio de Melhor Filme Português e Prémio TAP Melhor Documentário no Indie Lisboa no mesmo ano.
Rodado inteiramente no Alentejo, Raiva conta com as interpretações de Isabel Ruth, Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra, Rita Cabaço, Diogo Dória, Catarina Wallenstein e Rogério Samora. O filme conta ainda com a participação especial de Herman José e de Lia Gama, num papel de homenagem a Nicolau Breyner, que integrava o elenco original do filme, mas que faleceu na véspera das filmagens.
É exactamente com um canto alentejano que Raiva começa e termina. A história, baseada no romance Seara de Vento de Manuel da Fonseca, anda à volta da pobreza no interior de Portugal que assolava os camponeses na década de 50. E essa pobreza trazia consigo uma enorme solidão, uma ostracização da maioria da população em detrimento do enriquecimento dos patrões e, claro, um sentimento de raiva que se ia acumulando ao longo de uma vida. As injustiças sociais não se ficavam pelo baixo poder de compra que, muitas vezes, não dava para comprar um único pão. As oportunidades de emprego eram parcas, tudo era controlado por uma única família e isso limitava o futuro das famílias.
Nada melhor do que retratar esta realidade do que através de uma imagem a preto e branco, do som dos animais, do vento, do campos que vão para lá do horizonte, das rezas, da hora da missa, dos jantares silenciosos e dos sentimentos que se ficam pelos olhares e pelos pensamentos. E tudo isto despoleta em Palma, um homem de família, uma frustração tão grande que torna um humilde agricultor num assassino da noite. Depois de ter arriscado a sua vida na clandestinidade que existia naquele período com o país vizinho, perde mais uma vez a única oportunidade de trazer estabilidade à sua família que já se encontrava numa situação desesperante.
Apesar de alguns traços exímios na caracterização do período e de o realizador já ter alguma ligação com a zona alentejana, o filme peca por não aprofundar realmente o quotidiano da vila, do sofrimento da clandestinidade, das tradições daquela zona como é o caso do canto alentejano que é cantado em diversas ocasiões. Apesar disso, é uma obra satisfatório para um estilo não tão recorrente de Sérgio Tréfaut e que mostra o quão o nosso país continua tão centralizado e o interior, de Norte a Sul, continua a ser desaproveitado e, acima de tudo, o quanto desconhecemos da realidade actual e passada do nosso país.