“A Star is Born” tem de facto algo a dizer, mas não o diz
Numa época de remakes, reboots e remasters é curioso que aquele que é feito pela quarta vez, como é este “A Star is Born”, seja na verdade aquele em que essa característica mais passa despercebida, talvez fruto da sua própria natureza romântico-dramática, ou então quiçá por não se tratar, numa análise mais a frio, de um produto da máquina industrial cinematográfica que entre “Spider-mans”, “Halloweens” e os novos live-action da Disney têm saturado as salas com produtos que, ao invés de filmes, são já verdadeiras marcas.
Não é que “A Star is Born” seja um filme alternativo, porque de todo não o é. Trata-se de cinema comercial, e do forte, no entanto parece que essa sua característica, ao invés de forçar o espectador no seu produto, antes o consegue embalar numa história que, pelo menos na sua primeira metade, transmite aquilo que será um belíssimo exemplo de cinema de conforto.
Lady Gaga, aqui elevada por alguns a actriz de mão cheia, move o ritmo do filme, através de um biopic fictício que curiosamente encontra paralelismos, em alguns momentos, com a carreira pop e a mensagem da própria cantora/actriz. Bradley Cooper, por outro lado, além de se estrear na realização (e muito bem, já lá iremos), contracena com Gaga interpretando um estereótipo de super estrela de rock em declínio. Com um arranque muito forte, o tal cinema de conforto explora as pequenas características do encontro ocasional entre uma estrela musical conceituada e uma aspirante a cantora.
A primeira hora deixa-se construir habilmente, sem riscos, de forma prazerosa, com uma interpretação segura de Gaga e, principalmente, uma interessantíssima realização de Cooper que não se inibe de dar um toque pessoal à forma como movimenta a câmara. A forma como, nessa primeira metade, “A Star is Born” consegue caracterizar a dimensão do escopo pessoal de ambos os protagonistas é portentosa e não deixa de ser entusiasmante assistir à forma como, por mera coincidência da vida, a personagem de Gaga está a pisar um palco perante milhares de pessoas, à medida que o plano se afasta do seu rosto e nos dá uma percepção de profundidade de tudo o que está a caracterizar o estado de espírito da protagonista nesse momento. A partir daí “A Star is Born” entra num declínio estanque e sem ideias difíceis de compreender. De forma meramente operária e económica, parece que Cooper se desinteressa pelo desenvolvimento da personagem e se limita a adicionar factos (Gaga, aqui denominada Ally, vai de cantora acústica a estrela Pop numa flecha e com pouco ou nenhum desenvolvimento) meramente qualificativos que dão a entender ao espectador que, sim, a protagonista atingiu o estrelato, ainda que não se perceba muito bem como.
Nota-se que Cooper ainda pretende dar algum ênfase argumentativo à relação deteriorada dos seus protagonistas, em particular numa discussão de casal na casa de banho que parece saída dos apanhados. Lady Gaga dá tudo de si nessa discussão, e nesse momento a carreira da sua personagem Ally já em pouco ou nada se distingue da actriz que a interpreta, e é aí que as fragilidades vêm ao de cima. Ali não estão duas personagens, estão dois actores a fingir algo, e é difícil não sentir algum embaraço e esboçar um sorriso perante esse pequeno “teatro” entre ambos.
Seguidamente temos uma mensagem contraditória e esquizofrénica. Na discussão anteriormente referida, Bradley Cooper afirma à co-protagonista que ela só chegou onde está graças a ele. Gaga retorce, afirmando que foi o seu talento e o facto de ter algo a dizer ao público que lhe deu esse sucesso. A esquizofrenia entra quando a mensagem que a sua personagem Ally passa enquanto estrela pop é sexualizada e vazia de conteúdo, como foi na carreira de Lady Gaga na vida real. Por outro lado, o talento que Ally/Gaga afirma ter sido a chave do seu sucesso só deu frutos porque foi guiada na tela por homens, desde o seu pai à estrela rock interpretada por Bradley Cooper, passando pelo seu manager.
Se o objectivo era passar uma mensagem de empoderamento feminino, então o filme falhou redondamente. “A Star is Born” tem de facto algo a dizer, mas não o diz e nunca o demonstra. Por outro lado, nos meandros da falta de ideias da segunda metade do filme, está a decadência da personagem de Cooper, incompleta e subaproveitada, mas ainda assim mais interessante que o mero elencar de factos que caracteriza a sua cara metade na tela. Falta muito a “Star is Born”, muitíssimo. Fica-nos a música, gravada em tempo real, onde aí sim o talento da cantora mais que dá cartas.