Falhamos a vida
Uma das heranças humanísticas da civilização actual talvez seja a solidão. Daqui a duas ou três décadas, – quando as civilizações que, até então, se encontravam preservadas de forma mais visível em museus pelo mundo forem engolidas pelas grandes corporações que ditam o nosso futuro e o nosso quotidiano – a solidão será um sentimento transformado num marco da nossa sociedade, em que só não existirão celebrações, porque cada um de nós estará na sua própria bolha, alheado do acontecimento. Nesse momento, as distopias chegarão ao fim da suas etapas: tornar-se-ão realidade, e que triste realidade.
Numa sociedade onde o sentimento de pertença e de verdadeira partilha são tão presentes e ao mesmo tempo tão escassos, o ser humano cai na tendência de se vender à sua própria imaginação que, para tristeza dele mesmo, pode nunca roçar a realidade, criando um abismo cada vez maior entre sonhos (o que se imagina?) e as relações humanas. Num mundo onde é mais fácil explicarmos o que nos vai na alma através de uma mensagem de telemóvel, ou num post – tudo à distância de um clique de um polegar -, é relativamente fácil fecharmo-nos numa bolha digital, que lentamente até foi criada com a nossa bênção.
Acredito que, em forma de antecipação, a solidão, em sociedades como a nossa, dificilmente algum dia será realmente olhada pelas massas como uma doença que precisa de acompanhamento. Até porque se calhar será uma realidade tão evidente e comum a todos nós que se tornará num género de atributo que contradiz os nossos próprios genes culturais: a necessidade intrínseca de existir em comunidade. Se essa normalização acontecer será um retrocesso civilizacional.
A própria comunicação, como nos diz Yuval Harari na sua obra “Sapiens: Breve História da Humanidade”, é a maior arma do ser humano e, quando utilizada em massa, é a característica primordial que nos distingue do resto dos animais. Porém, talvez por agora comunicarmos frequentemente com um número cada vez maior de estranhos, isso fez com que a presença e a existência dos outros se tenha tornado tóxica. Talvez esta dinâmica nos tenha tornado também em estranhos que perderam o valor da singularidade.
Ou se calhar tem tudo mais a ver com a forma como planeamos a vida e nos esquecemos que a falha é intrínseca à própria vida.
“- Falhamos a vida, menino!
– Creio que sim… Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é, falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação. Diz-se: «vou ser assim, porque a beleza está em ser assim». E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre marquês. Ás vezes melhor, mas sempre diferente.”Eça de Queiroz n’Os Maias, em 1888