Eu cá é assim que vejo a coisa. Se estiver enganado, corrijam-me
Nunca pensei, em dias de minha vida, ver-me nesta situação: ter de defender com unhas e dentes a democracia liberal, ameaçada de morte mais que certa.
E sim, quem a ameaça não é um movimento, uma confluência lógica de vontades informadas, dialogantes e visionárias, portadora da génese de uma outra maneira de co-existirmos. Não. Quem vai conduzir a democracia liberal a uma morte certa é um enxame de pequeníssimas bolhas de cólera, cada uma delas fechada a sete chaves no seu pequeno delírio privado. Aquilo que dantes era um movimento, um partido, um sindicato, um grupo de reflexão aberta, é agora, na sua expressão mais blindada, um grupo de WhatsApp em que os membros repetem & reproduzem as mesmas 2 ou 3 banalidades que os identificam; e, na sua expressão mais aberta, uma página da Facebook em que as várias bolhas (milhares delas) se insultam ferozmente umas às outras.
A única maneira de congregar tantas fúrias discrepantes é o surgimento de um líder. Para concitar a adoração de todas elas, o líder deverá ostentar orgulhosamente o mesmo grau de monumental ignorância, e reduzir o seu discurso a mínimos quase ininteligíveis. Se ladrar & grunhir, por exemplo, dificilmente irá alienar uma qualquer das mil facções de pequenos umbiguistas. Latidos & grunhidos a rejeitar coisas, é claro. Quais coisas? “Isso aí”, nas imortais palavras do próximo Presidente do Brasil.
Quando tiver as facções coléricas todas todas com ele, gritando o seu nome pelas ruas, pode então passar à fase seguinte: anunciar as medidas necessárias para acabar com “isso aí”.
E agora é que vem a parte mais engraçada.
Todos aqueles que berravam exclusivamente em nome da sua própria bolha, com exclusão de todas as outras (ignoradas ou abertamente hostilizadas, com quem nunca comunicaram, a não ser por palavrões no Facebook), vão passar a berrar a uma só voz. Renunciam à que tinham, e passam a reproduzir, como autómatos, as palavras do querido líder. A fragmentação e pulverização excessiva dos discursos dá lugar, sem transição, ao unanimismo da reprodução acéfala de UM SÓ discurso, um discurso alheio, para mais.
Esta inversão total das vozes tem a peculiaridade adicional de saltar por cima do processo de debate, da confrontação entre os ressentimentos, as aspirações e as ideias.
Na França: podemos ter a certeza de que o próximo President de la République vai ser a Marine Le Pen, se não for outra figura ainda mais sórdida. Não apareceu ainda porque não calhou. Mas basta-lhe começar a ladrar.
É que o pessoal do carcanhol esticou-se à brava, pá. E a malta que ficou de fora desaprendeu de pensar, deslumbrada com os substitutos que lhe puseram à disposição.
Eu cá é assim que vejo a coisa. Se estiver enganado, corrijam-me.
Crónica de Vasco Pimentel
Vasco Pimentel é director de som com estudos musicais pelo Conservatório Nacional de Lisboa e formação em cinema pela Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa. Em actividade desde 1979, trabalhou em mais de 140 filmes de longa-metragem – entre eles “O Céu de Lisboa”, de Wim Wenders, ou “Aquele Querido Mês de Agosto”, de Miguel Gomes. Ministrou aulas e workshops em instituições como a Universidade Nova de Lisboa, a London Film School e a Cineteca de Madri.