Terrorismo de género
Sim. O menino que vêem na fotografia sou eu. Foi tirada no Portugal pardacento de Salazar, quando os rapazes estavam proibidos de ter comportamentos de menina.
Eu nunca fui um rapaz masculino: interessava-me mil vezes mais observar as minhas avós a fazer lindas colchas brancas em croché do que uma coisa que eu já na altura considerava acéfala e boçal (futebol, desculpem). Eu queria aprender a fazer croché, mas, nas férias que passávamos em Portugal, os mais velhos insistiam comigo para eu fazer coisas de rapaz. Ninguém me quis ensinar croché (muito menos tricô, que exigia o manejo de duas agulhas!) e deram-me um brinquedo de rapaz para as mãos: uma pistola.
Não me apaixonei pela pistola, mas ficou a fotografia – tirada pelo meu avô como espécie de comprovativo documental de que eu não era maricas. Mas eu era. E sou. E o pior para Salazares e Bolsonaros é que adoro ser homossexual. Não quereria ser heterossexual por nada deste mundo, porque a pessoa que eu sou é intrinsecamente gay. É algo que me define e que eu amo.
No entanto, chegar ao amor pela minha própria homossexualidade não foi um caminho fácil. Porque fui vítima do terrorismo de género. Fala-se (sem conhecimento) de «ideologia de género», mas muito pior é o terrorismo de género. Eu e tantos rapazes da minha geração (e de mais novas, infelizmente) fomos sujeitos a um autêntico terrorismo psicológico. «Não sejas maricas». «Não fales com essa voz apaneleirada». «Comporta-te como um homem». «Pareces uma menina».
O decurso da minha adolescência foi uma desaprendizagem relativamente à pessoa que eu verdadeiramente sou. Fiz tudo e mais alguma coisa para não parecer maricas – mas é claro que um pássaro não pode mudar de penas, como tão bem se diz em inglês. E eu nunca consegui deixar a 100% de ser «apaneleirado» na minha maneira de falar e de me mexer. O meu primeiro namorado, dez anos mais velho do que eu e ele próprio vítima de terrorismo de género bem pior do que todo aquele que eu sofri, dava-me dicas constantemente para eu «não parecer maricas». Era sempre: «não fales assim, não digas isso, não pegues assim no cigarro, não pegues assim no copo, não te rias assim».
Por outras palavras: «não sejas tu».
Este terrorismo de género foi de tal modo marcante na minha psique que ainda hoje apanho um choque quando me vejo na televisão: eu que pensava ter conquistado a arte de ser «straight acting» vejo, com olhar crítico, o mesmo maricas que eu era em criança. Não consegui, com quase 56 anos, extirpar de mim o paneleiro. Paciência.
Triste triste é o que vejo à minha volta neste nosso Portugal de 2019: vejo ainda hoje gays armariados por toda a parte, a fingir desesperadamente que são heterossexuais; e não são só pessoas da minha geração. São rapazes novos, na faixa dos 20 e dos 30. A internet está cheia de recantos onde a comunidade gay afirma coisas como «não gosto de efeminados», «não gosto de passivos» e, mais espantoso ainda, «não não gosto de versáteis» (os heterossexuais que me estão a ler que desculpem a terminologia técnica).
O ideal dentro da comunidade gay continua a ser o homossexual que se comporta como heterossexual, que é «masculino», que não tem «trejeitos». Continua o incentivo à não assunção da própria sexualidade – porque o terrorismo de género continua, vivo da silva, tão tóxico e pernicioso como era quando eu era um rapazinho português no fascismo de Salazar, a quem os adultos deram uma pistola para as mãos para se sentirem menos angustiados pelo facto de terem de educar um menino que olhava fascinado para as mulheres a fazer croché, que se entediava de morte com futebol e que não era capaz de falar com «voz de homem».
Menino esse cujas cores preferidas eram (e são ainda) cor de rosa e azul.
Combatamos a tremenda desonestidade que está por trás do termo pejorativo «ideologia de género» e foquemos a nossa atenção em fazer frente àquilo que é verdadeiramente abominável: o terrorismo de género. Cada pessoa humana tem o direito de ser quem é.