Ciclo “Recordando José Álvaro Morais” e debate com Beatriz Batarda e Luis Miguel Cintra
“Um cineasta vivo, assombrado pela beleza e a liberdade e pela nossa incapacidade de as vivermos.”
Saguenail, in “Reinos desencantados: um olhar sobre a obra de José Álvaro Morais”
Fulgurante e vivo do que é comum no cinema português, o discurso artístico de José Álvaro Morais existe por direito próprio no espaço de sentido que a arte procura e ocupa. Objecto, semântica, presença. “Flor discreta [do nosso cinema]”, disse, certa vez, Agustina Bessa-Luís a propósito da pouco lembrada poeta Maria Judite de Carvalho, também José Álvaro Morais, discreto e gracioso na sua proposta cinematográfica, algo esquecido também, privilegiou a poesia como meio de transporte para o ecrã. Exuberante e minimal, não mais temático que performático, como conseguindo justapor luz e obscuridade, faz dos seus filmes um convívio de temas (topoi) clássicos e contemporâneos, assumindo uma intertextualidade ou doce promiscuidade com as artes teóricas e plásticas (literatura, teatro, pintura, escultura). O reconhecimento da diferença e riqueza na obra de Álvaro Morais reside na reconciliação de aspectos ambíguos e plurívocos que encontramos nas relações que estabelece entre a ficção e o documental (real e artifício), a introspecção e a ampliação onde o sagrado (interior) e o obsceno (exterior, que etimologicamente significa fora de cena) namoriscam.
“Cantigamente”(1975), a sua primeira longa-metragem, reporta-se à década de quarenta em Portugal e ao papel da rádio, do cinema e das artes plásticas na fase de consolidação do regime; “Ma Femme Chamada Bicho”(1976) retrata a pintora Vieira da Silva num imaginário paralelo cujo objecto é deslocado para a acção do sujeito. Vieira da Silva não é afinal a pintora, mas a mulher, a esposa, o animal, a bruxa, por cima disto pintada de azul! “Zéfiro” (1983) é um filme-viagem, um fresco sobre Portugal Meridional onde se deixa Lisboa de barco até à margem sul do Tejo e onde o Sul tem um tratamento metafórico, como um lugar onde diferentes culturas se cruzam formando uma identidade muito própria. Também as narrativas elípticas e herméticas elevadas a um extremo romântico e carnal tocando o cúmulo da experimentação no filme “O Bobo” (1987) — premiado com o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno —, que descreve em dois planos temporais os últimos dias de ensaio de uma tentativa de adaptação teatral do romance homónimo de Alexandre Herculano e onde faz uma digressão por questões de uma dita “portuguesidade”, através de intrigas políticas e enredos amorosos.
O tratamento da figura do tempo e sua relação com o lugar e com os personagens é outro dos elementos distintivos na obra de Álvaro Morais, que parece partir do pessoal para a arte, por oposição a Manoel de Oliveira que partia da arte para chegar ao humano/pessoal, e para quem os motivos misteriosos eram mais o lugar que a pessoa. Aqui o lugar é a pessoa, como em “Peixe-Lua” (2002), por ele descrito como “um filme com personagens em desequilíbrio para a frente, uns mais enérgicos e outros mais preguiçosos. Que a meio parece transformar-se em road-movie mas que, afinal, volta ao ponto de partida. Aparentemente. É um filme de verão, de verões. Há duas épocas no filme, dois verões separados por meia-dúzia de anos, os anos do fim da juventude, o tempo que os personagens levam a aperceber-se de que estão a ficar sós. Fim de verão, tórrido: estamos numa vila ribeirinha em frente de Lisboa, do outro lado do Tejo, os personagens tomam decisões, que talvez não sejam as melhores, mas que, para eles, são definitivas.” O seu último filme, “Quaresma” (2003), que parece fechar o ciclo dos temas maiores da fábula “vem trazer fascinantes leituras à obra que o precede (…) tem por pano de fundo uma galeria impressionante de personagens femininas (…) Nunca ninguém filmou com esta urgência e mítica força a paisagem da Serra da Estrela, a permanência granítica do Norte de um país do Sul” (Mário Jorge Torres).
Sobre a obra longa e breve de Álvaro Morais, escreveu João Maria Mendes no belíssimo ensaio dedicado ao realizador: “O cinema de José Álvaro Morais é habitado por um imaginário onde perpassam marinheiros dançantes ou em correria, como se estivessem perpetuamente atrasados para qualquer embarque, aqui e ali em tintas de comédia musical (uma alusão a um certo Jacques Demy, mas também a algum do modernismo pictórico de José de Almada Negreiros); a velha Lisboa da Costa do Castelo e da Baixa, que se vem espreguiçar no Tejo doméstico entre Alcântara e o Mar da Palha, e que para ele era um mar; personagens masculinas de vocação sexual incerta, ou claramente bissexuais, redesenhando de modo declaratório o mundo dos afectos; e uma busca de identidade miscigenada como a dele (originalmente filho-de-família provinciano, vindo para Lisboa para estudar medicina, e depois europeizado e cosmopolitizado pelo cinema) (…) E é também um cinema pontuado por um bom humor à Truffaut, o bom humor destinado a tourner en dérision, a tornar irrisório aquilo mesmo de que se ocupa — o bom humor discreto e parco de quem conhece o valor de sorrir do que faz, sem no entanto se desmerecer ou apoucar.”
A atenção com que vemos os seus filmes tem tanto a obrigação de estar à altura da atenção com que José Álvaro Morais abordava a realidade quanto o cuidado de não o deixarmos cair no esquecimento. Por esta razão, a Medeia/Leopardo filmes organiza uma double feature dedicada ao realizador, quinze anos passados sobre a sua morte, no dia 30 de Janeiro, no Cinema Monumental, com a exibição dos filmes “Peixe-Lua” (19h00) e “Quaresma” (22h00), que contará ainda com uma conversa com o produtor Paulo Branco e os actores Beatriz Batarda, Luis Miguel Cintra, Marcello Urgeghe e Ricardo Aibéo.
Programa
Quarta-feira, 30 de Janeiro
19h00
“Peixe-Lua”
Conversa com os actores Beatriz Batarda, Luis Miguel Cintra, Marcello Urgeghe e Ricardo Aibéo e o produtor Paulo Branco
22h00
“Quaresma”
Preço: 5 euros / filme