Com Nise da Silveira as melhores revoluções são as internas, recheadas de cor
“Eu sou uma pessoa curiosa do abismo. Embora tenha a consciência de que o abismo é tão profundo, que eu apenas passo nas bordas. Então, eu pensei em utilizar as actividades como meios de expressão da problemática interna dos doentes. E oferecer a eles, ou utilizar actividades que pudessem, de alguma maneira, agir sobre essa problemática.” [Nise da Silveira – Posfácio: Imagens do Inconsciente] Foi essa a mudança espoletada pela psiquiatra brasileira Nise da Silveira que, no momento em que lhe foi ordenado a apertar o botão para iniciar o tratamento eletrochoque de um doente, desobedeceu e frisou, “eu não aperto”. Uma mulher que desencadeou uma revolução, não com os picadores de gelo com os quais se efectuavam lobotomias — método desenvolvido pelo neurologista português Egas Moniz e que lhe valeu o Nobel da Fisiologia ou Medicina, em 1949 — mas com tintas e pincéis, dando assim espaço para que magníficas obras de arte vissem a luz do dia. Ou seja, tratava-se de dar atenção ao mundo interno dos clientes [Nise preferia o termo cliente a paciente], um mundo interno que precisava de ser ouvido. Isso não representa, afinal, tudo aquilo porque vale a pena lutar? Em 2019 contam-se, já, 20 anos sob a sua morte. Por isso mesmo, vamos conhecer melhor a mulher que teve a coragem de dizer um não e construir o seu próprio caminho contribuindo, assim, para o desenvolvimento da terapia ocupacional, bem como o alvoroço artístico que os seus clientes, a priori considerados já casos perdidos, conseguiram criar. Com mais ou menos loucura, todas as pessoas carregam um mundo por descobrir — a revolução faz-se quando lhe damos expressão e é, desse modo, que a liberdade começa. E assim foi Nise da Silveira, pioneira no tratamento mais humanizado e digno das pessoas institucionalizadas e, a par disso, uma voz que se ergueu contra a institucionalização.
Quem foi Nise da Silveira?
Filha única, nasceu a 15 de Fevereiro de 1905, em Maceió, capital de Alagoas. O seu pai, além de professor de matemática, era também jornalista e director do jornal homónimo do mesmo estado. Já a mãe era pianista. Segundo as suas próprias palavras, a casa era “uma festa permanente” com os constantes saraus e as frequentes visitas de inúmeros artistas, como a própria revela no documentário Olhar de Nise, de Jorge Oliveira. A cultura, portanto, sempre fez parte da sua vida e não foi ao acaso que a literatura, Machado de Assis principalmente, e a poesia, em especial a obra de Antonin Artaud, foram de máxima importância, mais até, do que os livros técnicos de psiquiatria. Convém relembrar o forte pendor psicológico de Assis (para Nise, “não há maior mestre de psicologia do que Machado de Assis”) assim como o facto do próprio poeta, actor e dramaturgo Artaud ter sido, ele próprio, institucionalizado e submetido a tratamentos de electrochoque. Apenas com 16 anos, era a única mulher no meio de 156 outros alunos no curso de medicina, em Salvador, o que a tornou na primeira alagoana a cursar na área. Em 1926 formou-se e, no ano seguinte, com a morte do seu pai, mudou-se para o Rio de Janeiro. Em 1933, através de concurso público, começou a trabalhar no antigo Hospício da Praia Vermelha e, pouco depois, viria a ser presa sob a acusação de professar ideias comunistas. Esse período foi, igualmente, de extrema importância para o reforço e florescimento das suas concepções de liberdade e igualdade que viriam, posteriormente, ser valiosos para a realização do seu trabalho como psiquiatra e enquanto precursora do verdadeiro impulsionamento da terapia ocupacional no Brasil ― encarada, na altura, apenas como trabalho braçal e de serventia.
Tendo como base da sua ideologia a antítese da fórmula cartesiana, havia em Nise uma forte influência do modelo fenomenológico que dá ênfase ao estudo dos fenómenos da consciência em si, através da sua significação e simbolismo. E, claro, seria no trato com o doente, na interacção com ele, que surgiria o entendimento da sua psique. Para isso, ter-se-ia de dar espaço ao paciente para ele se manifestar tal como é, sem ideias previamente estabelecidas. Era a isso mesmo, a essa atenção pelo ser-humano à sua frente e a permissão de uma maior subjectividade — o seu modo de actuar― que designava Emoção de lidar. E foram essas mesmas concepções humanistas, literárias e filosóficas que foram essenciais para encarar a psiquiatria não, apenas, como uma estratificação fechada de um conjunto de sintomas e doenças. Antes, encarava rupturas psíquicas como estados do ser, tal como os “inumeráveis estados do ser” de Artaud.
Após ter sido liberta e ter passado algum tempo sem exercer, voltou ao activo no Centro Psiquiátrico, em Engenho de Dentro, em 1944. Foi, então, ante o desenvolvimento e a adopção de novas práticas como a lobotomia e o electrochoque, que começou a sua oposição contra estas formas de tratamento. “Fui designada para trabalhar numa enfermaria sob a direcção do chefe de psiquiatria, o Dr Fábio Sodré, que me recebeu com muita atenção e dispôs-se a ensinar-me os novos métodos para trabalharmos em colaboração. Então, ele mandou preparar um doente para o electrochoque. O doente ficou deitado na cama, com o dispositivo de electrochoque, que nem reparei bem como era, e um botão. Ele apertou o botão e o doente entrou em convulsões. Disse à enfermeira, ‘recolha este doente e traga o outro.’ Veio outro doente. Depois ordenou, ‘agora você vai aplicar o electrochoque, é só apertar esse botão.’ Eu respondi, ‘não aperto. Isso se chama tortura!’ Então, fui ao director do centro psiquiátrico e disse-lhe, ‘eu não posso ficar na secção para onde me designou.’ Ele respondeu, ‘então só há a terapêutica ocupacional que é dos serviçais, de alguns doentes e funcionários serventes.’ ‘Então eu quero ser servente, mas não quero dar electrochoque.’ Aí eu mudei logo tudo, varrer passou a ser jardinagem, costura (que fazia parte) passou a bordados inventados pelas pessoas — joguei fora todas as revistas. Queria todo mundo trabalhando livremente.” [in Olhar de Nise]
A emoção de lidar pela arte
Entregue a uma área desacreditada e designada, apenas, “a serviçais, alguns doentes e funcionários serventes” é, então, que se encontra com o artista Almir Mavignier [que começa a trabalhar no centro psiquiátrico como monitor] e a história se inicia. Com pretensão de se afirmar como pintor, o jovem que necessitava de ganhar dinheiro para poder sobreviver e pintar, gostaria de desenvolver essa mesma actividade naquele espaço e, como tal, propõe a Nise da Silveira criar um ateliê de pintura. Almir foi, desse modo, essencial para estabelecer com Nise a ponte que faltava entre a psiquiatria, o estudo da mente humana e a arte. Falecido em 2018, o pintor e artista gráfico foi nomeado professor da Escola de Design de Ulm, em Hamburgo, sendo um dos primeiros artista da arte concreta/abstracta brasileira que nasceu em oposição à arte naturalista e figurativa. Destacou-se, igualmente, pelos seus cartazes ― ao todo elaborou mais duzentos posters ― e pelos jogos de óptica que criava, estabelecendo uma ligação com a Op Art. Segundo o que o próprio declarou no livro Projeto construtivo brasileiro na arte, “A tese de Pedrosa, A influência da teoria da Gestalt sobre a obra de arte, me informou que o conteúdo de uma forma não se encontra na sua associação com formas da natureza. Esse conhecimento me permitiu abandonar uma pintura naturalista e iniciar uma pintura de pesquisas concretas de formas livres de associações”.
Mas declarada, então, a sua intenção de avançar com o atelier, a primeira tarefa seria encontrar pessoas. “Artistas há em todo o lugar, porque não haverá artistas num hospital psiquiátrico? Isso me movia a procurar” [in Olhar de Nise]. E assim foram descobertos Carlos Pertuis, na enfermaria do hospital, que guardava os seus desenhos numa caixa de sapatos debaixo da cama; Adelina Gomes, que tinha o costume de fazer bonecas, “quem faz bonecas, faz esculturas” lembra Almir; Emygdio de Barros, internado há 22 anos, cuja única coisa que fazia era girar em torno de si e dizer que era um pião; Raphael Domingues; Fernando Diniz; Isaac Liberato que, traído pela mulher, acabou por morrer enquanto pintava a sua amada; e Lúcio Noemam, lobotomizado na mesma altura em que o seu trabalho tinha sido escolhido, entre os nove principais criadores da altura, para constar numa mostra do Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Numa época em que os pacientes com esquizofrenia eram tidos como casos perdidos, Nise da Silveira reparou, no atelier de modelagem (esculturas em barro) e pintura criado com Almir, no grande fluxo de imagens que começava a surgir. A verdade é que essa necessidade de expressão revelada pelos doentes esquizofrénicos profundos contrastava, em parte, com a aparente incapacidade de comunicação formal. Ao dar-lhes a oportunidade, por seu lado, de se poderem expressar de forma totalmente livre e através de actividades como a pintura ou a modelagem, reparou que essas eram apenas formas utilizadas para fazer um contraponto com a sua própria história e sentimentos internos. Ou seja, o que Nise compreendeu e, posteriormente, estabeleceu a base de toda a sua revolução, foi o facto de nos casos de esquizofrenia mais severa ou em que a comunicação ou verbalização formal está comprometida há, primeiro, que utilizar, desenvolver e dar expressão a aspectos não verbais como o desenho, por exemplo. Ou seja, em vez de ignorados ou eliminados, esses aspectos projectivos deveriam ser levados em conta e analisados. Segundo o que Bernando Carneiro Horta, autor da biografia Nise, arqueóloga dos mares, lembra, “foi nesse momento que houve uma explosão de pinturas, desenhos e esculturas que Nise e a equipe não esperavam. Nise, que já estava lendo Jung, constata aquilo que o psicanalista falava que, se para o neurótico – que seria todos nós, segundo Freud – o tratamento é através da palavra, da Psicanálise; já para o esquizofrénico a palavra não dá conta. Por isso, a proposta de Jung é que o tratamento do esquizofrénico deve se dar através da imagem”. A abertura faz-se nesse sentido: a nossa linguagem formal é,apenas, um tipo de linguagem; por isso mesmo é necessário chegar ao entendimento da linguagem do outro e à forma como se expressa. Mais do que meros trabalhos de ocupação ou mera arte, a psiquiatra notou como eram de suma importância para os seus pacientes comunicarem com o mundo, mas não só. Acima de tudo, eram actividades essenciais que estabeleciam a ponte com o seu eu interno, a sua história. Como Nise frisa, “é tudo uma história mas numa linguagem que não é a nossa linguagem lógica”.
Devido à afluência do trabalho desenvolvido pelos seus paciente e à necessidade de estudo desse mesmo acervo criou-se, então, o Museu de Imagens do Inconsciente, em 1952. É nessa altura que Almir, mais uma vez, tem a iniciativa de chamar a atenção de vários artistas, pintores, jornalistas e críticos e de arte, em especial o crítico Mário Pedrosa que, em conjunto com o empresário industrial Léon Degan, conseguiu levar a efeito uma exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo [MAM]. Tal criou um grande alvoroço porque, enquanto uma parte da comunidade artística conferia um grande valor artístico àquelas obras, uma outra parte dizia que se tratava de “obras de débeis mentais”. A essas críticas, Degan responde desta forma, “não faço exposição de loucos, faço exposição de artistas.”
À medida que os trabalhos dos seus pacientes lhe eram entregues, Nise começou a reparar nas formas circulares constantes, que muito se assemelhavam a mandalas. Fez, então, a seguinte observação, “de repente apareciam formas muito harmoniosas que não condiziam com o que a psiquiatria e todos nós estudávamos acerca da expressão do esquizofrénico, a começar pelo nome esquizo, cisão. E porque razão um indivíduo cindido desenhava formas tão harmoniosas? Era preciso reflectir sobre isso.” Como já tinha conhecimento do trabalho de Carl Gustav Jung, precursor da Psicologia Analítica, resolveu enviar-lhe fotografias desses mesmos desenhos. O psiquiatra suíço respondeu-lhe, para seu espanto, e confirmou que sim que, efectivamente, se tratavam de mandalas. Como resultado desse mesmo contacto, Nise da Silveira é convidada para o II congresso internacional de psiquiatria, em Zurique, que recebeu, no mesmo momento, a exposição do seu atelier de pintura e modelagem. Foi montada, por Almir Mavignier, uma sala só com mandalas, o que impressionou bastante Jung. “Era muito difícil encontrar mandalas, ali tinha uma sala cheia”, destacou Almir.
E, fazendo uma súmula de todas estas particularidades, assim eram, de facto, os quadros e as modelagens de Adelina Gomes, por exemplo, bastante pautados pela fusão da figura feminina com as flores e os gatos. Ao entregar um trabalho seu, chegou mesmo a dizer “eu queria ser flor”. De Emygdio Barros, internado há 22 anos, sem falar ou comunicar com ninguém, a não ser quando girava em torno de si mesmo para dizer que era um pião. Segundo o artista Almir, o que o Emygdio pintava eram coisas “dignas dos impressionistas.” Pintava, sempre, da esquerda para direita e, quando finalizava, recomeçava, outra vez, do lado esquerdo da mesma tela. Ou seja, modificava, constantemente, o que pintava, o que resultava no constante desaparecimento de muitas das suas pinturas. “O Emygdio para mim era um pintor tão fabuloso como Van Gogh . O meu papel era o de protegê-lo. Ia comprar tintas para mim, comprava para o Emygdio. Eu sabia que ainda não tinha chegado ao ponto em que o Emygdio já estava”, frisou Mavignier. Quanto ao delicado e frágil Raphael, após a separação dos pais, foi-lhe dito que tinha de assumir as responsabilidades da família. O emprego que encontrou, ironicamente, foi o de construir gaiolas para prender pássaros. “Sempre essas comparações, ‘Raphael é melhor do que Matisse’, essa situação de igualar Matisse a Raphael. Naturalmente, ninguém é melhor do que ninguém, mas são desenhos maravilhosos. Hoje eu digo que Picasso e Matisse nos prepararam para compreender Raphael”, ressalvou Almir.
O trabalho de Carlos Pertuis, que guardava os seus desenhos numa caixa de sapatos, debaixo da cama, como já foi dito, era o mais imbuído de misticismo e carga simbólica. Sapateiro de profissão, quando se preparava, de manhã, para ir para a oficina, teve uma visão à qual chamou O planetário de Deus. Chamou a família para partilhar a visão mas esta, que nada via, institucionalizou-o e assim foi até à sua morte Uma das suas obras mais marcantes foi, sem dúvida, a Barca do Sol: um barco sobre o rio a transportar um grande sol. Segundo o crítico de arte Mário Pedrosa, os trabalhos artísticos de Carlos Pertuis apresentam “contornos precisos, das formas límpidas, bem marcadas, em que o modelado é quase nenhum e o estilo é dado pelo jogo dos contrastes e as exigências de ordem simétrica. Nele o objetivo e o subjetivo tendem a unir-se sob uma organização arquitetónica dominadora. Dentro desta, as formas objetivas ou concretas, quando permanecem intactas, são dobradas a serviço da ordem, de um propósito ideal inconsciente do artista. É que ele tem uma visão de conjunto geralmente nítida, fora do tempo e sem qualquer ligação com o tempo.”
Com mais de 350 mil obras, o Museu de Imagens do Inconsciente ainda se mantém como centro de pesquisa da doença mental e da consciência humana.Mais do que bela arte pela bela arte, ou a arte-terapia, é esse mesmo estudo que interessa e precisa de ser desenvolvido. O mais interessante é compreender de que estamos a falar de três áreas a priori distintas mas que se querem, afinal, juntas: a semiótica da linguagem, o que nos leva à comunicação, a arte e a psiquiatria. Nise da Silveira foi eclética, aberta e inteligente o suficiente para desenvolver e aprofundar essas mesmas ligações. É tal e qual uma costureira, como dizia, que embora tenha preferência por uma tesoura, neste caso a psiquiatria e a psicologia analítica, mantém várias ao pé de si. Importante para a luta antimanicomial, deu um passo fundamental com a criação da Casa das Palmeiras, em 1956, que professa segundo os seus ideias e funciona como Centro de Dia, apenas. Esta mulher ensinou-nos que as revoluções fazem-se quando escutamos o nosso eu interno e lhe damos voz. Assim chegamos a um lugar onde as hierarquias acabam e todos têm o seu lugar. Porque, afinal, Nise da Silveira é como Artaud, “Há 10.000 modos de ocupar-se da vida e de pertencer a essa época. Quer que repita a frase? Há 10.000 modos de pertencer à vida e de lutar pela sua época.”
Artigo escrito por Ana Isabel Fernandes