“A Portuguesa”, de Rita Azevedo Gomes, deslumbra no Festival de Berlim
Afinal de contas, a verdadeira abertura da 69.º Berlinale, pelo menos a nossa, revelou-se em bom português, nas belíssimas paisagens naturais e nos longos planos sequência de Acácio de Almeida, nome de proa do Novo Cinema português, que adornam o admirável A Portuguesa, de Rita Azevedo Gomes. A todos os níveis, um trabalho sedutor sobre o tempo que passa de acordo com a adaptação que Agustina Bessa-Luís fez do conto do austríaco Robert Musil. Aliás, vários níveis acima do dececionante e improvável exercício de boas intenções em que se fica a complexa co-produção de The Kindness of Strangers, da dinamarquesa Lone Scherfig, aqui muito distante de Italiano para Principiantes, em 2000, no início da sua carreira internacional. Talvez a maior diferença entre estes dois filmes assinados por mulheres seja mesmo a respetiva dimensão do cinema, ou a falta dela. Mas já lá vamos.
Importa talvez realçar que no final da sessão de imprensa, em sala cheia, se comentava que o filme da realizadora portuguesa teria até mais competência para estar da Seleção Oficial. Provavelmente, só não fora selecionado por já ter sido exibido no festival de Mar del Plata, na Argentina, em novembro passado.
Mal o ecrã se ilumina, deixámo-nos invadir pela luz das paisagens bucólicas, quase sempre em longos planos-sequência milimetricamente desenhados. É claro que desde logo se nota a proximidade do ‘mestre’ Oliveira, a quem, de resto, a cineasta um dia se ofereceu para o acompanhar na rodagem, conforme explicou no recente debate na Cinemateca sobre a obra de Manoel de Oliveira. De resto, uma influência assumida na forma como constrói planos ‘únicos’ e recria mesmo ‘quadros vivos’.
Mas o que filma Rita Azevedo Gomes? Será o tempo que passa, a condição intemporal do género humano, ou talvez apenas quadros renascentistas, com os seus azuis, os vermelhos e a luz que nos fazem recordar algumas obras de Tintoretto, como uma sequência pueril que nos remete para o famoso ‘Nascimento de João Batista’? Talvez tudo isto. Mas para lá da história da donzela abandonada pelo marido nobre guerreiro que faz letra viva da frase que a personagem de Miguel Guilherme profere no veículo militar em Non, ou a Vã Glória de Mandar,“o homem fez-se para guerrear”, ficamo-nos com o tempo dos gestos de espera, da lassidão traduzida nas páginas daquele que é conhecido como “o Proust alemão”. É aí, nesse cinema sem pressas, que o rosto alvo de Clara Riedenstein (a ruiva sardenta de John From, de João Nicolau) mantém em lume brando a tensão erótica e a possibilidade de vingança com o marido, o nobre Von Ketten, numa composição digna de Marcello Urgeghe, demasiado ocupado com as guerras da sua ‘nobreza de serviço’.
Interessa talvez referir como a cineasta prolonga aqui o seu cinema de palavra e de História. Desde logo, num prolongamento curioso de Correspondências (2016), dando com a força das imagens o devido apreço plástico à palavra e ao texto. Mas também de género, ou da sua igualdade, tema tão caro a esta edição da Berlinale. Ao longo de pouco mais de duas horas, a câmara posiciona-se de forma a observar à distância este jogo provençal, doméstico e pueril em que homens brincam à caça enquanto as mulheres e alguns animais se misturam num reino que pode muito bem ser habitado também por unicórnios e bruxas. E até embalado pelas baladas medievais orquestradas por José Mário Branco ou no coro em que Ingrid Caven empresta a voz a e a presença, como que a segredar-nos que a memória de um certo cinema de autor passa por aqui.
A Portuguesa é um filme longo. Como já não se faz. Sobretudo porque sabe resistir ao tempo e porque é precisamente com o tempo que se solidifica e se torna cada vez mais belo. Também cada vez mais cinema.
Bem ao contrário é The Kindness os Strangers, um filme cujas boas intenções acabam por se dissipar na fórmula que tenciona cumprir a receita enunciada pelo título. Também numa história adaptada da literatura, neste caso, numa obra de Katrina Kittle, apostada em revelar como a vida de um rapaz moldada por acontecimentos traumáticos acaba por afetar um conjunto de pessoas. O problema é que mesmo uma ideia com algum potencial acaba por resultar numa história redundante destinada a fazer funcionar o sentimento fornecido pela pergunta: “o que posso fazer por si?” Em particular quando estão em causa elementos de violência doméstica, aliados a grupos de auto-ajuda e a um beifeitorismo inesperado. Vítimas desta tentativa gorada são os talentos de Bill Nighy, Andrea Riseborough, Tahar Rahim, Zoe Kazan, Caleb Landry James e Jay Baruchel, todos eles uns furos abaixo daquilo que já nos deram de bom.
Artigo escrito por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt