A crítica também passa de moda
Fazendo as contas, concluo que leio mais livros do que imaginava. Dos que deixo a meio, sei a quantidade e que é maior. O mesmo das séries de televisão, um vício confinado desde que sou pai. Sei as que só vejo meio episódio e até gosto e depois paro. Escolher um livro ou uma série tornou-se uma disciplina rigorosa, necessária. Leio muita crítica, muitas recensões. Também aqui, na leitura de crítica, é preciso rigor. Não se pode ler toda a crítica, nem se pode assumir que toda a crítica é um guia de consumo.
Há dois clichés sobre crítica que não são verdade. Um deles é o da crítica como guia de consumo. A melhor crítica mostra-nos critérios, uma estética e uma determinada ética. O outro cliché é de que só se pode avaliar a qualidade de uma crítica confrontando-a com os objectos que critica. Não é de todo verdade. Consumindo muita crítica, não se chega a consumir nem uma ínfima parte do que é criticado, mas forma-se uma ideia das qualidades e defeitos do crítico, da sua escrita, dos seus critérios, dos seus preconceitos, da sua capacidade de exposição. Pode-se confrontar cada um dos textos sucessivos que o crítico escreve e pode-se pesá-los contra os textos de outro crítico.
Defender que só se pode apurar a qualidade de um crítico vendo o filme, lendo o livro ou ouvindo a música é um lugar-comum que, num sítio pequeno e com pouca crítica, protege acima de tudo o mau crítico, que dá uma estrela a objectos que não percebe e confia que nunca o terá que justificar porque serão raros os que vão ler o livro.
Neste momento, em Portugal, o crítico de que menos gosto é João Pedro Vala, no Observador. Ontem li a crítica que escreveu à tradução portuguesa de Go, Went, Gone livro de Jenny Erpenbeck. Vala é exímio a descrever com clareza e fluência a sua incapacidade para perceber um tipo muito específico de objecto que, infelizmente para ele, corresponde a muito do que se faz de interessante na literatura actual – aquilo que se designa por literatura politicamente correcta, coisas que envolvam identidade, direitos civis, refugiados. O livro de Erpenbeck é isso tudo, logo Vala não o percebe, tal como não percebeu o Se Esta Rua Falasse, de James Baldwin. Ninguém é obrigado a perceber, claro, e calculo que a perplexidade irritada de Vala represente a do público-alvo do Observador.
Mas compare-se o artigo de Vala com o de James Woods na New Yorker, um crítico que nem é dos meus favoritos embora não pelas mesmas razões que Vala. Ou a crítica que lhe fizeram no New York Times. Dão-se ao trabalho de não ver apenas um mosaico de clichés panfletários, o caso do crítico do Observador, que gasta a sua crítica a ensaiar o encaixe do livro nas fórmulas que conhece e espera, mas de perceber que as aparentes fórmulas se organizam, são narrativa, são literatura, e fazem-no de um modo delicado e complexo. Percebe-se por um lado que o que impede Vala de perceber o livro tem que ver com a sua mundividência, do que sabe sobre refugiados, de política, etc. mas sobretudo do que sabe sobre literatura, da compartimentação que faz entre literatura e política, ignorando que os clássicos, o cânone só não são obviamente políticos para nós, porque a sua actualidade não é a nossa.
Não queria escrever tanto e agora isto precisa de uma conclusão. Aqui vai: a crítica também é um género literário e tem os seus ciclos as suas modas. A crítica que não sabe lidar com o politicamente correcto, com a política, com a sociedade, não interessa muito neste momento.