Mónica Gandarez: “A Venezuela já era uma ditadura há muito tempo, só que estava muito bem disfarçada”
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Quando Hugo Chávez ganhou as eleições presidenciais pela primeira vez, a Venezuela vivia uma crise profunda. Em 1998, a taxa de inflação era de 35,8% (umas das mais altas da região); a taxa de desemprego de 11,2%; 68% da população estava a viver na pobreza; o preço do petróleo era o mais baixo dos últimos 25 anos (12 dólares o barril). O PIB per capita durante os anos 90 era tão baixo como na segunda metade dos anos 70 e, cinco anos antes, em 1993, Carlos Andrés Perez, presidente na altura, tinha sido afastado por corrupção.
As eleições deram 56% dos votos ao líder do Movimiento V República – o partido fundado por Chávez que, mais tarde, deu lugar ao Partido Socialista Unido da Venezuela -, e foi a partir da sua tomada de posse, no início de 1999, que o paradigma económico começou a mudar. O governo bolivariano (que se diz herdeiro do legado de Simón Bolívar, militar e político venezuelano, figura central das lutas de libertação dos países da América Espanhola, no século XIX) concentrou-se em recuperar a indústria petrolífera: defendeu quotas de produção e aumento de preços, promoveu uma série de reuniões com outros líderes de países exportadores de petróleo; e recebeu, em Caracas, a segunda reunião, em 25 anos da Organização dos Países Exportadores de Petróleo. A partir desse ano, o preço do petróleo nos mercados internacionais começou a subir: em 2000, atingiu os 37$ (mais de o dobro do que quando Chávez tinha tomado posse, pouco mais de um ano antes) e continuou a subir, chegando mesmo a ser vendido a mais de 140$ o barril, em 2008.
Parte das receitas geradas com a exportação de petróleo serviram para financiariniciativas sociais, como as Missões Bolivarianas, uma série de mais de 30 programas de combate à pobreza e para a melhoria da educação e saúde dos venezuelanos: como a Missão Robinson, que usava voluntários para ensinar adultos a ler e escrever; a Missão Barrio Adentro, uma iniciativa para dar cuidados médicos dentro dos bairros mais pobres (e que foi elogiada pela UNICEF e pelas Nações Unidas); ou a Missão Mercal, que providenciava alimentos a preços mais baixos a famílias carenciadas.
Os resultados apareceram. Em 2005, a Venezuela era o país menos desigual da América Latina; no mesmo ano, foi declarado pela UNESCO como território livre de analfabetismo; entre 1999 e 2009, a taxa de desemprego desceu de 14% para 7.6%; o PIB per capita aumentou de 4.105 para 10.810 dólares; a taxa de pobreza extrema diminuiu de 23,4% para 8,5%.
Mónica Gandarez, venezuelana e portuguesa, que estudou Relações Internacionais na Universidade de Coimbra e ex-professora de Relações Internacionais e Introdução ao Mundo Islâmico na Universidade de Santamaría, em Caracas, explica que as medidas do governo chavista “tiveram um impacto positivo, inicialmente (…), mas não se mantiveram”. A economia da Venezuela ficou cada vez mais dependente da indústria petrolífera: por esta altura, provinham daí 98% de todas as receitas do país com exportações. Assim, quando o preço do barril começou a descer, já com Nicolás Maduro como presidente, depois da morte de Hugo Chávez, no início de 2013, a crise económica e financeira veio por aí acima.
A seguir, veio a repressão. Em 2014, a inflação estava já nos 68,5% e milhares de pessoas foram para as ruas – nesse ano, houve 9.286 protestos. Segundo a Organização das Nações Unidas, entre fevereiro e junho de 2014, 3.300 pessoas, incluindo menores, foram detidas; foram reportados 150 casos de tratamento desumano, muitos deles de tortura; 43 pessoas foram mortas. Leopoldo Lopez, um dos líderes das manifestações de 2014 e fundador do partido Voluntad Popular, da oposição, foi detido (mais tarde, em 2015, foi condenado a 13 anos, nove meses e sete dias por “incitamento à desordem pública, associação criminosa, atentados à propriedade e incêndio”). Hoje, está em prisão domiciliária.
“A Venezuela já era uma ditadura há muito tempo”, diz Mónica Gandarez, “só que estava muito bem disfarçada”. A Venezuela está nas bocas do mundo. Em 2018, novas eleições presidenciais deram o segundo mandato a Maduro, com 67,84% dos votos, numas eleições marcadas por indícios de fraude pré-eleitoral. A oposição apelou ao boicote, por não considerar o ato válido. Apesar dos resultados não terem sido reconhecidos por nenhum dos partidos da oposição, os dados oficiais (que a oposição denuncia como forjados) mostram a maior abstenção dos últimos 60 anos.
“Essas eleições de 2018 não foram eleições legais”. Mónica Gandarez que acredita que a seguir à eleição de 2018, passou a existir um vazio de poder: “A Venezuela não tem um presidente eleito”. Mas em janeiro de 2019, Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional e líder do partido Voluntad Popular, auto-proclamou-se presidente da Venezuela. Poucos dias depois, tinha já sido reconhecido por vários países e instituições: Parlamento Europeu, Estados Unidos, Brasil, Espanha, Alemanha, Reino Unido, França, Portugal, entre outros. Pelo contrário, países como Rússia, Cuba, México, Bolívia ou Turquia reconhecem ainda Maduro como legítimo líder venezuelano.
Guaidó baseia-se no artigo 233º da Constituição venezuelana para promover a mudança de regime. No artigo, lê-se: “Serão faltas absolutas do Presidente ou Presidenta da República: a sua morte, a sua renúncia, ou sua destituição decretada por sentença do Supremo Tribunal de Justiça; a sua incapacidade física ou mental permanente certificada por uma junta médica designada pelo Supremo Tribunal de Justiça e com aprovação da Assembleia Nacional; o abandono do cargo, declarado como tal pela Assembleia Nacional, assim como a revogação popular do seu mandato. Quando se produza a falta absoluta do Presidente eleito ou Presidente eleita antes de tomar posse, procede-se a uma nova eleição universal, direta e secreta dentro dos 30 dias seguintes. Enquanto não se elege e toma posse o novo Presidente ou nova Presidenta, encarregar-se-á da presidência da República o Presidente ou Presidenta da Assembleia Nacional. Se a falta absoluta do Presidente ou da Presidente da República se produz durante os primeiros quatro anos e o período constitucional, procede-se a uma nova eleição universal, direta e secreta dentro dos 30 dias consecutivos seguintes. Enquanto não se elege e toma posse o novo Presidente ou nova Presidenta, encarregar-se-á da presidência da República o vice-presidente ou a vice-presidenta do executivo. (…)”
A constitucionalidade do movimento tomado por Guaidó prende-se na interpretação deste artigo. Será que existe uma “falta absoluta” do Presidente? Será que não?
Ao mesmo tempo que se discute a crise política, uma crise humanitária toma o palco venezuelano: o desemprego passou de 7,5%, em 2013, para 34%, em 2018; a pobreza, que estava nos 48%, em 2013, subiu para 90%; a inflação está nos 1.3 milhões %; existem, neste momento, mais de três milhões de refugiados e migrantes venezuelanos em todo o mundo e um aumento de 4000% no número de venezuelanos a pedir estatuto de refugiado, desde 2014. Há fome, falta de alimentos e desespero.
O que acontecerá na Venezuela nos próximos meses não sabemos. Mas a história dos países com petróleo, ninguém a apaga. A Venezuela é o país do mundo com maiores reservas petrolíferas. Alguns dos outros países são Irão, Iraque, Kuwait, Arábia Saudita, Líbia – todos sofreram intervenções internacionais, invasões, ocupações ou guerras no último século. E os países que as conduziram estão entre os países que apoiam a mudança de regime na Venezuela.
Mónica diz que é óbvio que o petróleo tem que ver com isto mas, numa altura tão grave como esta, já pouco importa: “A única coisa que eu quero, neste momento, é que se solucione uma crise humanitária”. Nesta entrevista, falamos sobre os últimos 20 anos da política venezuelana com quem a viveu por dentro: dos anos de ouro de Chávez à crise do petróleo; da repressão sobre opositores à crise humanitária.
Obrigado a todas as pessoas que nos enviaram sugestões de temas e perguntas para esta entrevista: Bia de Noronha, Pedro Pinheiro, João Figueirinhas Costa, Nuno Vaz, Da Silva, Nelson Almeida Caetano, e Frederico Duarte.