Ansiedade e castração
Uma das razões pelas quais repito e insisto no valor da aprendizagem das línguas clássicas é que ninguém pode ter uma noção real das palavras colocadas pelos evangelistas na boca de Jesus se as ler em tradução. O leque de matizes e de segundos sentidos que estão presentes nas palavras em grego desaparece quando estas palavras são lidas noutra língua.
Também temos de dar atenção aos sentidos subtilmente diferentes em que os vários autores dos textos que integram o Novo Testamento usam determinadas palavras. A sua frequência ou raridade também é expressiva.
A palavra em que incide hoje a minha reflexão é normalmente traduzida por «tribulação», «aflição». O autor do Novo Testamento em que ela ocorre mais vezes é (não decerto por acaso…) Paulo, com 24 ocorrências. Nunca ocorre no Evangelho de Lucas (embora ocorra 5 vezes nos Actos dos Apóstolos, do mesmo autor); ocorre 4 vezes em Mateus e 3 vezes em Marcos. E apenas 2 vezes no Evangelho de João, ambas as vezes no mesmo capítulo 16.
Trata-se da palavra «thlípsis» (θλῖψις) . Mateus e Marcos usam-na de forma prospectiva, designando as tribulações que estão para vir (quer no sentido da perseguição de que serão vítimas os cristãos, quer no sentido profético dos sofrimentos que virão com a destruição de Jerusalém).
João, porém, dá à palavra outro sentido.
Na primeira das duas ocorrências da palavra no seu evangelho, o evangelista tem o cuidado de explicar o que ela significa para ele, usando primeiro um sinónimo e depois a palavra propriamente dita, quando escreve: «a mulher, quando dá à luz, tem sofrimento («lúpē», λύπη), porque chegou a hora dela; mas quando nasce a criança, já não se lembra da aflição («thlípsis», θλῖψις) por causa da felicidade» (João 16:21).
O entendimento aqui da palavra «thlípsis» parece funcionar como uma espécie de sinónimo de «lúpē» (sofrimento) e, ao mesmo tempo, como antónimo de felicidade.
Uns versículos mais à frente, Jesus emprega de novo esta palavra (pela segunda e última vez no Evangelho de João), numa das mais espantosas de todas as suas asserções: «eu disse-vos estas coisas para que em mim tenhais paz. No mundo tendes aflição. Mas animai-vos! Eu venci o mundo.» (João 16:33).
O binómio nesta frase já não é aflição/felicidade, como da primeira vez que a palavra foi usada por Jesus neste evangelho, mas sim aflição/paz. E, nesta frase, a paz não é tanto o antónimo da aflição; é mais o seu antídoto.
O que Jesus está a dizer é que aquilo que cura a «aflição» do mundo é a paz resultante das suas palavras, que são manifestação objectivável de algo mais abstracto e abrangente, que é a própria paz de Jesus. A paz que cura a aflição.
A palavra grega «lupē» (λύπη), da qual João parece propor «thlípsis» (θλῖψις) como sinónimo, significa, como explicou Platão (Filebo 31c), o contrário do prazer. Notemos que o melhor dicionário de grego nos informa que significa também «pain of mind».
Portanto, o sentido de «lúpē» projectado em «thlípsis» sugere que esta segunda palavra tem um significado que oscila, no entender do evangelista João, entre «ansiedade» e «ausência de prazer». É o que temos no mundo, diz Jesus: «no mundo tendes ‘thlípsis’».
No entanto, quem sabe grego conhece também outro sentido da palavra «thlípsis»: o sentido de «castração». O mundo não é só o lugar da ansiedade; é também o da castração.
Assim, talvez pudéssemos reflectir sobre o seguinte: quando Jesus profere, nesta passagem, uma das suas frases mais extraordinárias («eu venci o mundo», ἐγὼ νενίκηκα τὸν κόσμον), está também a caracterizar-nos o que é esse mundo que ele venceu e a natureza dessa sua paz através da qual ele o venceu. Uma paz que é o contrário da ansiedade, certamente. Mas uma paz, também, sem castração.