Nicola Cruz levou a sua música de dança do mundo ao Lux Frágil
No mundo da música, é bastante importante ter um bom sentido de oportunidade. O incontornável espaço lisboeta Lux Frágil é perito nesse condão, ao receber bons e pertinentes nomes para passar música ou tocar todos os fins-de-semana. Sejam eles estandartes da cultura club – ao som dos quais sabe sempre bem dançar – ou novas promessas entusiasmantes, é fácil encontrá-los lá. No passado fim-de-semana, a convite de um dos residentes da casa, Switchdance, o Lux Frágil recebeu Nicola Cruz.
Porque é que referimos o sentido de oportunidade? Nicola chegou a Lisboa no advento do seu mais recente álbum, Siku. Este é um trabalho místico e viciante, que compele a repetidas audições, numa tentativa de absorver todas as influências de música sul-americana que o produtor conseguiu encaixar, de forma límpida, nas batidas electrónicas profundas. É uma versão mais aprumada e orgânica daquilo que Nicola já havia feito em Prender el Alma, o disco anterior. Foi por isso que, no passado Sábado, se sentiu um certo fervilhar de entusiasmo no piso de baixo da discoteca. A longa fila para entrar prenunciava a antecipação que o público tinha em ouvir esta música quase em primeira mão, ainda por cima em formato live act.
Até por volta das 02:00, foi a vez de Switchdance preparar o público para o evento que o próprio potenciou. Com ritmos a passar pela space disco e house mais lento, os BPMs não estavam muito elevados. A música carregada de apontamentos exóticos e sons graves era mais sensual que pujante, e bem, pois era esse o ambiente que a noite pedia. Até Nicola subir à cabine, o espaço para dançar foi ficando mais e mais apertado, mas a descontracção do público era notória. Celebraram-se os primeiros ritmos do set do artista nascido em França, mas naturalizado no Equador, anunciados ainda por uma projecção que explorava todos os lados e texturas de objectos místicos como conchas, estátuas de templos ou pedras tumulares, renderizados numa amálgama de cores digna de um jogo de computador antigo – evocando a mistura entre antigo e artificial em que a sua música se movimenta.
O set segue a estrutura esperada de algo que ouviríamos numa discoteca, com as transições mais melódicas a desembocar nos ritmos mais fortes, que se vão convertendo aos poucos. Os ritmos começam naquilo a que o próprio Nicola chama de “step andino”, seguindo o mote iniciado por Switchdance, aos quais se adicionam batidas mais orgânicas bem entrançadas – herança do passado do artista como percussionista. Para além do ritmo, há uma atenção dada aos detalhes: ouvem-se flautas esvoaçantes, sitares espirituais e até coisas que não são instrumentos, como pequenos estalidos que enriquecem o som.
O primeiro lamiré de Siku veio com a faixa-título e o vibrar dos seus bongós. Os seus sintetizadores encantatórios ecoaram pelas paredes da discoteca, num tom invulgar para música electrónica dançável: algo mais misterioso e cristalino. É um deleite ouvir e dançar ao som de canções assim, que nos transportam para um mundo que é mais real do que imaginamos, mas distante da realidade do armazém à beira-rio plantado em que nos encontramos naquele momento. A cada transição vem o incentivo do público, entusiasmado por aquilo que vai ouvindo, ao qual o artista agradece com um sinal de cumplicidade.
A noite vai avançando, apressando consigo o ritmo, que ainda assim não perde as características que tornam a música de Nicola Cruz especial. Isso comprova-se quando temos direito a ouvir “Obsidiana”, possivelmente uma das melhores canções de Siku. Apesar de ser uma das canções mais dançáveis e directas do álbum, tem uma riqueza adicionada pelas guitarras e sitar que a povoam e pelo ritmo que vai ficando mais e mais profundo, assim como o baixo, que flui como um rio selvático. Ainda assim, o público não reage de forma tão entusiasta, talvez pela necessidade de algo mais agitado àquela hora. Talvez por isso, mais para o final do espectáculo, Nicola tenha desempoeirado “Eclipse”, do disco anterior. O seu sample vocal absolutamente glorioso, na sua alegria e ritmo saltitante, incentiva realmente o público a bambolear-se de um lado para o outro.
Quando Switchdance aparece de novo, sabemos que o set está a chegar ao fim, mas a transição não perde o ímpeto do que o antecedeu e o espectáculo acaba por se converter num B2B entre os dois protagonistas da noite, até largas horas.
Gostaríamos de ter mergulhado ainda mais no mundo tropical ao dançar ao som de “Esu Enia” – faixa em que o português Márcio Pinto toca balafon, um precursor do xilofone. Teria sido interessante ter a justaposição do instrumento ao vivo com a batida electrónica, mas a verdade é que o objectivo deste espectáculo não era esse. Esperamos rever Nicola Cruz em breve, num outro contexto em que possamos explorar todas as facetas da sua música, não apenas a que mais se aproxima da pista de dança.
Nota do editor: infelizmente, não foi possível obtermos fotografias do espectáculo de Nicola Cruz no Lux Frágil, pelo que ilustramos o artigo com outras imagens relacionadas.