“Agenda homossexual” e “verdade do Evangelho”
Qualquer frase escrita levanta imediatamente a pergunta sobre quem a escreveu. A resposta religiosa a esta pergunta será que foi escrita por Deus.
A resposta académica, no entanto, é diferente. A autoria do livro de Levítico é atribuída, hoje, por um consenso de estudiosos nas mais prestigiadas universidades internacionais, a «learned scribes of the Jerusalemite priesthood», escrevendo não antes do século VI a.C. (cf. «The Jewish Study Bible», Oxford, 2014, p. 195).
Esses «doutos escribas» da classe sacerdotal de Jerusalém lá tiveram as suas razões para incluir na sua redação do Pentateuco os únicos dois versículos explicitamente condenatórios da homossexualidade no Antigo Testamento (antes de vocês comentarem sobre Sodoma, etc., informem-se primeiro sobre o tema). Se calhar estes escribas da classe sacerdotal de Jerusalém eram homens como alguns cardeais homofóbicos de hoje.
Alguns desses cardeais têm sentido uma necessidade compulsiva de vociferar em público contra um inventado fantasma útil, que é uma «agenda homossexual» dentro da Igreja, agenda apresentada por eles como contrária à «verdade do Evangelho».
Parece-me claro, em 2019, que cabe a cada um de nós perguntar se faz sentido, hoje, condenar à morte um homem que se deitou com outro homem como se ele fosse uma mulher, só porque, no século VI a.C., a uns escribas judeus, ainda que doutos, fez sentido redigir esse ditame. Fez-lhes sentido a eles; se calhar não nos faz sentido a nós.
Sobretudo porque, se formos seguidores de Jesus e preocupados com a verdade do Evangelho, sabemos que a noção de condenar alguém (e ainda para mais condená-lo à morte) é absolutamente contrária ao que Jesus pregou e à Verdade mais essencial que constitui a destilação última do Evangelho. Verdade essa que se exprime numa só palavra: amor.
A Verdade do Evangelho (como ainda se ouviu no domingo passado na missa) é amar – amar até aqueles que nos odeiam, mas amar também aqueles que nos amam. Duas mulheres que se amam ou dois homens que se amam não contrariam a Verdade do Evangelho; antes dão testemunho dela.
Dir-se-á que, para sermos seguidores de Jesus, temos de estar atentos ao seu mais verboso apóstolo, esse homem fascinante chamado Paulo. Este grande santo escreveu, de facto, frases que podem ser lidas como condenatórias dos homossexuais e que exprimem a ideia de que pessoas homossexuais estão excluídas do reino de Deus (frases que nunca foram ditas por Jesus Cristo). No entanto, essa declaração de exclusão do reino de Deus é contraditória com o retrato que os quatro Evangelhos nos dão repetidamente de Jesus: alguém que não excluía ninguém, que dialogava com todos e todas (não esquecer a Samaritana!), que se sentava à mesa com toda a laia de «pecador».
E há outro problema. Não sabemos ao certo o que Paulo quis dizer com os termos gregos como que ele designa supostamente homossexuais, «malakoí» e «arsenokoîtai». Há inúmeras teorias sobre o que esses termos possam significar. E quem é que se vai entender com a terminologia com que os homossexuais são designados?
Há coisa de poucos dias ouvi alguém comentar que «homossexuais, tudo bem; agora paneleiragem é que não». O que será isso de «paneleiragem»? O que são esses «malakoí» de Paulo? São maricas? Os «arsenoikoîtai» são «paneleiros»? Podemos postular a existência de uma categoria de homossexual isento de paneleiragem? Tudo isso não será, antes, um enorme disparate?
Voltemos à Verdade do Evangelho. E lembremos aos cristãos conservadores que, segundo a Verdade do Evangelho, na expressão «Deus, Pátria, Família», por exemplo, há duas palavras que são contrárias à Verdade do Evangelho, se lermos atentamente todas as palavras atribuídas pelos evangelistas a Jesus: essas palavras são «pátria» e «família».
Por outro lado, com tudo o que diga respeito ao amor, estamos em terreno seguro. Não há contradição entre AMAR e viver em pleno a Verdade do Evangelho. E a melhor «agenda homossexual» que um cristão pode ter (esteja ele em que posição estiver nas igrejas cristãs) é justamente a de mostrar, de espalhar e de testemunhar o amor.