A grande beleza
Tenho amigos e amigas detestáveis pelos quais o tempo parece não passar. Normalmente são pessoas cujo estilo de vida privilegia a conservação de um estado de funcionamento razoável do corpo, seja pela alimentação, pela prática de desporto, pela recusa do álcool e do tabaco ou, mais geralmente, pela combinação de uma multiplicidade de hábitos saudáveis. Na verdade, a mera descontinuação de um hábito negativo e a adopção de um contraponto positivo parece ser suficiente para operar um deslocamento do centro de gravidade dos preceitos de vida; o sujeito que deixa de fumar descobre-se passado pouco tempo no ioga e apreciando torções de coluna que, em tempos idos, o deixariam num estado pré-paraplégico. Não parece possível – ou de todo o modo provável – ser saudável às fatias.
Somos tendencialmente atraídos por polos ao redor dos quais gravitam uma constelação de elementos com graus distintos de afinidade. É assim, por exemplo, com as pessoas com as quais nos relacionamos a diferentes níveis. Por terem uma determinada profissão, por exemplo, esperamos deles um certo gosto musical, uma certa orientação política, um certo estilo de roupa. Os intervalos nos quais a diversidade de manifestações de cada característica acaba por não nos surpreender não são alvo de racionalização ou de inspeção prévia. A surpresa acontece sempre a montante da conceptualização. Na surpresa descobrimo-nos sempre no momento imediatamente posterior a derrocada de uma pré-concepção. “Mas como é que podes ser de direita sendo actor?”; a nossa compreensão do mundo é, como Nietzsche não se cansava de dizer, preguiçosa. Funcionamos por anotações gerais e vagas. O ponto de vista é essencialmente mandrião. E não se cansa, por isso mesmo, de ser apanhado em contrapé.
Nunca tive particular fascínio por me ver ao espelho. Nunca tive, aliás, razões para isso. Mas houve uma altura, até há dez anos, na qual a coisa era modicamente suportável. Lembro-me muitas vezes de Charles “o outro lado da lua” Bukowski e do seu repúdio por espelhos. As pernas eram a sua única medalha estética. Não se cansava de repetir a Jane, o seu grande amor, “look at my legs, baby, I’ve got great legs”. Cada um se ocupa de promover e gabar o si-próprio na montra como pode e sabe.
Li há uns dias uma peça entre a sociologia e a curiosidade, como soi escrever-se nestes dias, uma coisa com aparente validade científica e ainda assim leve, o fast-food servido no porão da ciência que sempre desbloqueia uma conversa num jantar de colegas em que ninguém quer lá estar. A peça era sobre pessoas consensualmente bonitas – era esta a ideia que passava – e as suas experiências em entrevistas de emprego. Enquanto que o comum mortal com rosto de anonimato se tenta escapar como pode ao pisoteamento em que se transformaram a maioria das entrevistas de emprego, às iterações de Adónis ou de Helenas pergunta-se-lhes apenas quando podem começar. A impressão decorrente da beleza, sobretudo da beleza que parece engrandecer e simultaneamente esmagar tudo em seu redor, deixa-nos numa posição de extrema vulnerabilidade: a pessoa diante de nós, por um motivo que não racionalizamos mas que intuímos imediatamente, é muito maior do que somos. A beleza é uma espécie de passaporte diplomático: o seu portador pertence a uma elite de acesso privilegiado nas mais diversas situações sociais.
O único revés da beleza – o seu fardo, se assim o quisermos colocar – é o facto de esta ser muitas vezes um factor de intimidação alheia. E quando não o é, é fonte de desconfiança: aquele que é belo vê a beleza como uma coisa entre outras na constelação de atributos através dos quais se pensa. Por isso nunca tem a certeza de que os outros – aqueles pelos quais este se interessa – se interessam por ele pela expressão de uma afinidade que ultrapassa os limites da pele ou apenas para serem co-portadores, ainda que que a fingir, da luz herdada na lotaria genética.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.