A epidemia do descompromisso

por Comunidade Cultura e Arte,    12 Março, 2019
A epidemia do descompromisso
Ilustração de Ben Wiseman

Inúmeras foram as vezes em que, depois de se relembrar o pessoal que respondera à sondagem que o jogo era às 19h, com um campo de cinco para cinco,  alguém enviou uma mensagem justamente às 18h59h a dizer que, afinal, e sem motivos de força maior, não poderia comparecer. Isto quando houve o cuidado de enviar esse lembrete… Joga-se à mesma com nove jogadores, e a questão não está aí, mas na volubilidade com que se encara o compromisso, tantas e tão repetidas vezes chutado para canto.

Adepto da modalidade, apenas peguei no exemplo para dizer que, hoje em dia, e sobre certos terrenos de jogo, se fica com a sensação de que paira uma espécie de epidemia do descompromisso. Pondo o desporto de parte, parece que, quando nos distraímos, roemos a corda com base no que daria mais jeito, fintando depois a justificação em troca de um típico “afinal não posso”, que solto sabe a pouco. Desmarcamos, reagendamos e adiamos com uma facilidade tremenda, no durante recebemos outra solicitação, e baralhamos as contas da nossa agenda. Tudo bem que são pequenos descompromissos, mas não deixam de ser brechas que abrimos dentro de um grupo, ou de um acordo que, embora transitório, quisemos estabelecer. A larga escala, porventura, serão gestos semelhantes ao de deitar um lata de refrigerante para o chão ou até de abdicar do direito de voto… Mas não entremos por aí.

A meu ver, pode ser que o descompromisso que discuto, e que me põe também em introspectiva, tenha raízes mais profundas: pode ser que surja nesses entrementes em que nos esquecemos de tomar um partido para nós… Noutras palavras, quando nos retiramos da “aposta” com quem somos verdadeiramente (processo que, clichés à parte, envolve esforço e resiliência). Daria pano para muitas mangas, este parêntesis, e posso ter pintado um quadro mais negro do que o que realmente existe, tudo por causa de um jogo de futebol desequilibrado. Regresse-se, no entanto, ao relvado: basta que um dos jogadores da equipa que perde baixe os braços para que toda a equipa fique descompensada. Sim, poderá ser inglório correr atrás de um prejuízo inevitável, mas o cronómetro ainda não parou, e antes entrega que desânimo. Assim preferem os adeptos que vão ao estádio, creio. Numa outra análise, a atitude de algum “desleixo” para com o jogo pode inclusive ser projectiva, acabando o jogador em causa por desistir de outros comprometimentos que a vida, eventualmente, lhe ofereça…

Há compromissos pontuais, outros mais duradouros, sejam eles com o “ambiente”, o estado, a família, o grupo de amigos do futebol ou com o outro imediatamente próximo. Se não os houvesse, não se discutiria a complexidade das relações humanas, e bem poderíamos atravessar a vida de mãos nos bolsos, a assobiar para o lado. Mas os compromissos existem como vínculos de confiança, não deixando de ser nosso testemunho. Se for para os abandonar, devolver-lhes-emos as razões certas, e no tempo certo. Caso contrário, dificilmente receberão os outros as nossas palavras como garantia – palavra de honra!

Crónica de André Almeida Paiva
O André é Geólogo de formação, trabalha num Museu de Ciência e a escrita faz parte do seu quotidiano.

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