Quando Vijay Iyer e Craig Taborn partilham dois pianos e uma sonoridade
No mundo do jazz contemporâneo, a cada disco surgem novas e cada vez mais arrojadas colaborações entre os vários intervenientes da cena, que o impede de ficar estagnado. Cada artista traz a sua visão para a mesa e acaba por criar música nova que continua a testar os limites do jazz. Nem todas as colaborações são vitais, mas há artistas mais determinantes que outros, por isso é que a junção de Vijay Iyer e Craig Taborn num mesmo disco ou palco é entusiasmante, pois são ambos exímios exemplos da improvisação que melhor se faz hoje em dia.
No passado dia 19 de Março, o duo apresentou a música que compõe The Transitory Poems ao vivo na Culturgest. Esse álbum, gravado há um ano, em Budapeste, nasce da capacidade que os dois têm de complementar as suas valências musicais, de antecipar e saber ouvir, assim como de saber agir quando o devem fazer. Na folha de sala, diz que “a música está em movimento neste mundo fugaz de The Transitory Poems, transformando e mudando de momento para momento”. Foi mesmo isso que aconteceu no concerto a que assistimos, no qual cada momento foi inesperado.
Os dois pianistas entram em palco sem grande pompa, cada um ocupando um lugar de lados opostos do conjunto dos dois pianos, dispostos de forma a parecer um único instrumento complexo partilhado pelos dois artistas. A música baseia-se no trabalho de The Transitory Poems, replicando a sua sonoridade, apesar de não a copiar inteiramente – o que não faria sentido, tendo em conta as capacidades de improvisação de Iyer e Taborn. Essa sonoridade passa muito por melodias em modo pára-arranca, em que a nota que segue a anterior parece fora de sítio, mas, mesmo assim, soa bem. Inicialmente pode parecer apenas aleatório, mas a dissonância coerente que se cria não é nada fácil de atingir, ainda para mais quando é feita ao vivo.
É interessante ver as diferentes formas de tocar dos dois artistas. Vijay Iyer senta-se de forma hirta, martelando as teclas com uma postura algo académica, para criar as bases melódicas por cima das quais Craig Taborn vai percorrendo o teclado de forma mais livre, de dedos esticados, encurvando-se sobre o mesmo. Ocasionalmente os papéis invertem-se, mas a forma de criação mantém-se. As notas entrelaçam-se e criam vaivéns de som que vão crescendo de intensidade até aos picos das canções. Um dos exemplos mais impactantes é o de “Kairòs”, que reconhecemos pelo contraste entre os tons graves e os estridentes agudos do crescendo, mas principalmente pelo final épico, em que o som é tão intenso, que nos vemos obrigados a fechar os olhos para absorver tudo.
A meio, os pianistas trocam de lugar, não sabemos se por preferência ou necessidade, se como uma forma de agitar as coisas. Depois de explorarem inúmeras conjugações de diferentes notas, prendem-se na textura dos sons graves como base melódica. Mais para o final de “Luminous Brew” (canção dedicada ao pianista Cecil Taylor), Iyer toca repetidamente a mesma nota, sobre a qual Taborn solta arpeggios loucos, com notas que se sobrepõem de forma impressionante. No fim, há um choque entre os sons dos dois pianos, cada um a ser tocado numa ponta diferente do seu teclado, em mais um clímax polirrítmico arrebatador.
Na despedida, o público não se levanta, já à espera do encore, que acaba por vir sem delongas. Aí, os artistas revelam uma nova técnica: fazer vibrar as cordas do piano com as suas próprias mãos, para moldar o som do piano a algo que soe completamente diferente. Ouvimos aquilo que parece ser um sitar – ou até algo que nem soa a um instrumento musical – completar o som ao qual já nos havíamos habituado desde o início do espectáculo. O final não é o pináculo que se esperava – esse já tinha vindo antes – o que acaba por ser apenas mais um dos rumos inesperados que os artistas seguem na escrita destes poemas transitórios que tocam para o público nos seus espectáculos, mas que podemos ouvir sempre que quisermos no álbum The Transitory Poems, lançado há poucos dias.