Diário imprevisto de viagem
Não tenho normalmente grande contacto com miúdos de quinze anos – calma, não é nada disso. Embora o meu filho tenha de facto quinze anos, é um miúdo – como diremos – assaz atípico. Não sei o que se passa na cabeça dos adolescentes agora, na verdade não sei o que se passa na cabeça das pessoas em geral e tenho por hábito desconfiar das personas judicativas que as pessoas assumem facilmente diante de um teclado e de um ecrã. Quase ninguém é tão mau, tão bom, tão engraçado ou tão feliz como o avatar virtual que o representa. Além disso, vivo – como quase toda a gente – numa bolha constituída pelas amizades que de certo modo reforçam o ponto de vista segundo o qual esta atmosfera pode ser, a espaços, respirável. Dito isto, um adolescente de quinze anos não é mais misterioso para mim do que os participantes num programa da manhã: equivalem-se. A diferença é que ainda assim é mais fácil – embora porventura menos tolerável – ter acesso a um programa da manhã.
Fui convidado em 2018 para estar duas semanas em Bordéus com outro escritor – um marroquino, desta feita; o negócio é ter duas perspectivas, uma de dentro e outra de fora, da europa e da união europeia – ao abrigo de um programa local de cidadania europeia. A ideia é que os putos contactem com escritores – vivos, porque para a maior parte deles ser escritor equivale a estar morto – que lhes coloquem desafios às preconcepções que naturalmente decorrem da falta de contacto efectivo com outros pontos de vista além daqueles que os rodeiam e que tendem a reforçar aquilo que pensam. A ideia era portanto pô-los a pensar ao lado daquilo que pensam. Duas escolas por dia, duas horas em cada escola, uma vintena de criaturas em ebulição hormonal e com uma paciência tendencialmente diminuta para tudo quanto não seja imagem. Uma maratona.
Eu que não tenho especial vocação para a troca de experiências a nível intergeracional – ou mesmo horizontalmente geracional – achei que podia valer a pena nem que fosse para parasitar a experiência alheia com a qual são feitos todos ou quase todos os romances. A minha grande surpresa foi encontrar miúdos em cada turma muito diferentes dos restantes, bastante mais isolados e circunspectos no início das sessões, mais silenciosos, também, mas surpreendentemente curiosos acerca da pequena fatia de mundo que lhes conseguíamos entregar entre as perguntas orquestradas e as risotas. Não me percebam mal, como quase toda a gente que olha para baixo na hierarquia geracional, estava convencido do absoluto desproposito da juventude. Achava que não queriam ler, que não queriam aprender, que não queriam saber de quase nada senão do que se passa no enquadramento de um ecrã de telemóvel ou de computador. É quase mas não inteiramente verdade. Lêem menos, de facto (multiplicada de tal modo a oferta de distrações, seria estatisticamente improvável que a escolha deles recaísse tantas vezes sobre o livro como quando este competia apenas com a televisão). A principal diferença, parece-me, é o facto de estarem muito mais preocupados com o futuro do que eu e os da minha idade estávamos. Preocupam-se com o desemprego, com as alterações climáticas, com os direitos das minorias, das mulheres, com o racismo e restantes discriminações. Não quer dizer com isso que o plano social coincida com o plano prático. Mas pensam nas coisas com uma seriedade incompatível com a manutenção de uma fachada social de aceitação. Infelizmente – não há bela sem senão – parecem-me muito adultos. Demasiado adultos. Com quinze anos eu estava essencialmente preocupado em captar a atenção da Fatinha que parecia só ter olhos para um latagão com um cabelo loiro e encaracolado a lembrar as piores fotos do antigamente e incapaz de alinhar duas ideias que não gravitassem em redor do seu umbigo. O meu pai coitado bem me tentava ajudar: “pelo menos não deixes que a tua mãe te escolha a roupa”.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.