“Us”, de Jordan Peele, é caso de estudo sobre humor e terror
Cada um tem os seus medos característicos, únicos e em consonância com experiências pessoais, educação, fé no sobrenatural ou no poder divino, no inesperado e, talvez, em si mesmos. E, aí, reside, talvez, uma das maiores inquietações: confrontar o eu, mesmo que neste caso seja ligeiramente diferente. É exactamente nesta narrativa que Jordan Peele, já conhecido pelo seu “Get Out” (primeiro filme do realizador), pega e joga com os espelhos de cada indivíduo, através do poder de um doppelganger, satirizando a ilusão que é o sonho americano. Ao contrário do filme anterior em que a temática abordada, o racismo, é bastante incisiva e frontal, neste, apesar de também ter como objecto a sociedade, nunca é explícito e só os mais atentos é que conseguem compreender o que está por detrás da violência e do medo nas personagens.
Ao longo do filme, tem-se a ideia de que se está a ver só mais um jogo de susto e de tensão, algo que facilmente aborrece, depois de tantas experiências fracassadas com sagas em que bonecos tentam meter medo aos humanos, de formas quase sempre ridículas. Porém, há uma sequência de cenas que vão saltitando entre o humor e o terror e é essa dualidade que faz com que o espectador esteja cada vez mais alerta para o que se esconde na sombra. Ao contrário do que se possa pensar, o riso e o medo são sentimentos opostos mas que se encontram muitas vezes na vida e pode-se facilmente passar de um para o outro. E é nas coisas mais mundanas que pode residir o humor, como o caso em que a chave de emergência da família principal se encontrava por baixo de uma pedra (“that’s the whitest shit i ever heard”).
Entre o passado e o presente da vida de Adelaide Wilson, Lupita Nyong’o tem uma das melhores interpretações da sua carreira. A capacidade de interpretar duas personagens supostamente antagónicas em termos de valores e personalidade, faz com que nunca consigamos perceber, até ao fim, que fomos completamente enganados pelo lobo vestido de ovelha. Ela representa, de forma brilhante, a podridão do sonho americano: para subir na vida e ultrapassar o inferno é preciso fazer o que, em circunstâncias normais, seria moralmente questionável, possivelmente até ilegal. No país da Liberdade, poucos o são; numa sociedade democrática e de valores apaixonantes, a selvajaria existe de forma cada vez mais requintada e menos visível à luz do dia. E para uns viverem confortavelmente — a maioria já nasceu rica — muitos têm que sofrer, é uma balança perfeita. Não é preciso pensar muito, para constatar a realidade em questão: os 1% mais ricos do mundo concentram tanto dinheiro quanto metade da riqueza produzido pelos mais pobres. Desta forma, a família normal e estável como a dos Wilson torna-se, em certa medida, no vilão que, para salvar a sua vida, destrói a de outro. Assim, podemos dizer que a nossa felicidade é bastante relativa e que não depende só de nós.
Por fim, Jordan Peele está num caminho de ascensão numa categoria em que falta chama e diversidade. Como humorista, mais uma vez consegue falar sobre um assunto sem ser óbvio e cansativo, demasiado politizado ou moralista. Através deste balanço, cria um filme que certamente se pode considerar um exemplo para estudar futuramente sobre como o humor surge no meio dos momentos mais assustadores e o poder do mesmo como forma de enfrentar os nossos demónios. Para além disso, mostra a relevância de filmes de terror como forma de questionar a sociedade americana, num mundo em que é cada vez mais difícil captar a atenção do público.