A renda de Muhammad Ali
Sobre o Conan Osiris, é interessante como tanta gente acha que ele não deve boicotar Israel. Dão muitas razões. Acham injusto que sacrifique a sua carreira. Acham que isso é censurá-lo. Acham que é uma má tática. Acham que um boicote cultural não faz diferença. Acham que é possível ir lá e fazer uma acção qualquer, dizer ou exprimir qualquer coisa que ajude os palestinianos e ainda assim ganhar o festival.
O que lhes custa a perceber é que boicotar é difícil quando se trata de abdicar de coisas que nos são próximas. Torna-se um sacrifício. Não se está a boicotar armamento. Não se está a boicotar uma indústria. Não se está a boicotar um produto agrícola. Está-se a boicotar um festival organizado pelo Estado de Israel e é muito mais difícil, porque implica perder oportunidades, implica fazer contas, implica talvez perder.
Com isto quero dizer que o boicote faz-se sobretudo aqui, no meio de nós, não é um desporto de bancada, é como uma dieta, é como uma convicção. Um músico no palco a mostrar uma bandeira da Palestina ou a dizer uma palavra de ordem é como o Ronaldo a marcar um golo, enche o coração, mas o golo é dele. Deixar de ligar aos golos do Ronaldo porque foge aos impostos ou pode ter violado mulheres é algo que exige mais de nós do que ser espectadores de bancada. Exige sacrifício e espírito crítico. E é difícil.
Não exijo, nem poderia exigir, a Conan Osiris que boicote o Festival. Não levo a mal se não fizer nada. Levo a mal se fizer o que tanta gente faz que é justificar-se desvalorizando o problema, desvalorizando quem boicota, dizendo que é censura, dizendo que não quer privar os Israelitas da sua música (como fez Nick Cave). Prefiro que o faça em silêncio, não tentando fazer da sua própria liberdade de expressão o centro do problema.
Na década de sessenta, por razões políticas e religiosas, o pugilista Muhammad Ali recusou-se a lutar na guerra do Vietname. Foi preso, condenado por fugir à recruta, foi destituído dos seus títulos. Apelou ao Supremo Tribunal, que lhe deu razão. Esteve afastado dos ringues durante aqueles que costumam ser os melhores anos na carreira de um pugilista normal. Ali saiu deles maior do que quando entrou, saiu com uma estatura que não se consegue só no ringue. Dizia ele que o serviço que se presta aos outros é a renda que se paga pelo nosso quarto neste mundo.