Salvador Martinha é livre para “meter o capuz e desaparecer na multidão”
O humor é uma forma de distanciamento. Percecionar a vida, enquanto ela decorre, através de uma lente exterior e consciente de si mesma ajuda a passar o dia de forma mais leve. Salvador Martinha vive com este “chip”, ao ponto de já se tratar de uma condição da sua existência – é ao mesmo tempo personagem e espetador.
A palavra que define o seu modo de vida é “ausente”… mas fisicamente presente. E, ao sétimo dia, Salvador Martinha não fugiu nem descansou. Já com seis datas esgotadas no Capitólio, na Avenida da Liberdade, a sétima manteve a tradição. Foi a última passagem do comediante lisboeta pela sua terra na versão “Cabeça Ausente”, o seu novo espetáculo a solo. O encerramento da digressão aconteceu um dia depois (9 de março), em Viana do Castelo.
Ainda em 2018, Salvador Martinha começou a percorrer o país com este que é o seu sétimo espetáculo a solo da carreira. Entre outros feitos, já esgotou o Coliseu de Lisboa, em formato 360° (um espetáculo que pode ser visto no RTP Play), e com “Na Ponta da Língua” tornou-se o primeiro – e até agora único – comediante português a ter um solo no Netflix.
Se as provas estão dadas, o que é que ainda há para mostrar?
Durante o espetáculo surge a resposta: “coisas diferentes”. Um bilhete para um espetáculo de stand-up de Salvador Martinha dá direito a muito mais do que uma cadeira onde nos podemos sentar enquanto ouvimos umas piadas. É um cartão de visita para a mente do humorista. Lá encontram-se memórias, pensamentos perversos e dissertações minuciosas sobre os grandes temas – como a parentalidade –, e também sobre os mais irreverentes – como ir a um supermercado biológico.
A sala ilumina-se durante todo o espetáculo. Metaforicamente, mas também literalmente. O público vai atrás do ritmo: desde a entrada mais musical e experimental até ao humor mais cáustico, passando pelas interações hilariantes com alguns membros da plateia. Aliás, é aí que Salvador vive. Sabe muito bem como improvisar e criar uma rápida ligação com a audiência.
Por isso é que a iluminação do público é constante. Isso não acontece nos restantes espetáculos de stand-up. A norma é a luz ser centrada unicamente no comediante, mas, sendo a conversa com o público tão frequente e natural, as primeiras filas são sempre visíveis para o comediante.
O acting e o humor físico de Salvador Martinha são algumas das suas grandes armas. Percebe-se facilmente que estamos perante um performer acima da média, no seu habitat natural, que não impõe a barreira do “não é aceitável expor isto” ao seu espetáculo. Dave Chappelle, um dos grandes comediantes americanos, diz que “todos acham que o gajo que está em cima do palco é o falso, mas ele é o verdadeiro” – e, sem barreiras no seu espetáculo, Salvador Martinha é exatamente isso: verdadeiro.
“Cabeça Ausente” é uma hora e quinze minutos de comédia de observação requintada, mas também javarda; acutilante, mas por vezes singela. Um humor com uma diversidade quase paradoxal. Ideias soltas, mas ao mesmo tempo conexas.
No Capitólio, criaram-se algumas personagens entre os espetadores: a dona Tina, uma senhora mais velha do que o habitual espectador, sentada na primeira fila; o “Tijolo”, que ganhou esta alcunha apenas pela cor-de-tijolo da sua camisola; o Ferreira, um senhor de casaco de cabedal, que serviu de “pedófilo circunstancial” numa das bits (piadas) de Salvador.
No final, evocando uma atuação do comediante inglês Andrew Lawrence a que assistiu no Fringe – o festival de artes de Edimburgo –, Salvador apela a que a comédia se mantenha isenta de restrições. Nota-se que o palco é sinónimo de liberdade para Salvador; é onde este se mantém impoluto. No entanto, o comediante dá a entender que, após esta tour, a pausa dos palcos poderá ser mais longa do que o habitual. Por agora, podem vê-lo no youtube, com a sua série “Sou Menino para Ir”, e ouvi-lo a respirar “Ar Livre”, no seu podcast. Mas o seu futuro passa por “meter o capuz e desaparecer na multidão”.
Este artigo foi originalmente publicado em oitavacolina, e é da autoria de Gustavo Carvalho, tendo sido aqui reproduzido com a devida autorização.