Era uma vez um Cavaleiro que voltou a casa
para os meus pais, para a minha irmã
Está frio e vento lá fora, as nuvens ganham uma cor cinzenta. Na sala de aula, os alunos acompanham atentamente os gestos da professora.
Estamos em Dezembro e lemos O Cavaleiro da Dinamarca, de Sophia de Mello Breyner, esse conto que desde então inspirou profundamente a minha infância, a minha juventude, a minha adultez. Sem esse livro literalmente luminoso, o meu imaginário e, particularmente, a quadra festiva do Natal, jamais seriam os mesmos para a minha jovem experiência no mundo.
O seu enredo nunca me abandonou a memória: pelo contrário, parece intensificar-se à medida que os anos passam, à medida que vou ficando mais velho, à medida que vou querendo regressar com mais e mais força ao passado, e de lá nunca mais voltar.
Acende-se a lareira, uma voz etérea toma a palavra: um homem, no Norte da Europa, janta e convive com a sua família na noite natalícia. Faz uma promessa: daí a um ano, estaria ausente da grande festa do Natal, estaria longe dos seus entes mais queridos, para se aventurar numa dura e arriscada peregrinação à Terra Santa com o objectivo de conhecer os locais sagrados onde Cristo nascera, vivera e ensinara. E assim se cumpriu a sua vontade, partindo o corajoso Cavaleiro por alturas da Primavera.
No entanto, na hora de regressar à sua querida terra natal, na Dinamarca, foi surpreendido por uma violenta tempestade que atirou a embarcação onde viajava para junto da costa italiana. Aproveitando a sorte ou o infortúnio do destino, o Cavaleiro aí se detém nas belíssimas cidades do Renascimento, tais como Ravena, Veneza, Florença ou Génova, contactando, nomeadamente, o Mercador de Veneza, que lhe narra a história amorosa de Vanina e Guidobaldo, ou Filipo, um amigo trovador do riquíssimo banqueiro Averardo (natural de Florença), que lhe revela as intrigas de Giotto e ainda de Dante e Beatriz.
Depois de aguçada a curiosa imaginação, o nobre Cavaleiro, saudoso do conforto da sua casa e do calor da sua família, decide, agora sim, volver ao seu lar tão adorado. Após uma viagem recheada de perigos, na qual outra vez uma temível tempestade quase compromete a vida do Cavaleiro, o barco que o transportava consegue finalmente chegar a porto seguro.
Agora o caminho faz-se a andar e, já muito perto de alcançar o seu destino, o Cavaleiro debate-se ainda, no gelo do Inverno, com assustadores lobos e ursos que se intrometem na sua heróica passagem. Fraco, esfomeado e consumido pelo frio, o nosso audaz Cavaleiro pensou, por momentos, que ali morreria, falhando a promessa que havia feito à sua família há exactamente um ano. E é então que, subitamente, como por milagre, uma luz harmoniosa acendida pelos anjos se ergue do topo do abeto mais alto da floresta onde vivia o Cavaleiro. Fez mais um esforço e, como se fosse empurrado pela mão divina, encontrou, entre a massa de arvoredo, a sua casa coberta de neve e a sua família pronta, como sempre, a acolhê-lo na ternura infinita do seu coração, para assim celebrarem, mais um ano, a felicidade candente de uma ceia de Natal. E é por esse motivo, diz-nos Sophia, que os pinheiros se iluminam na quadra mais resplandecente do nosso calendário.
Fecho o livro, desligo a luz, vejo uma estrela sorrir no céu desde a minha janela. Lá fora, como se não houvesse tempo, está frio e vento. As nuvens confundem-se com a branca eternidade da noite.
Capa de O Cavaleiro da Dinamarca, de Sophia de Mello Breyner, com ilustrações de Henrique Cayatte, Porto Editora – 2016