Ver melhor o vocabulário do português
Entre as perguntas que me têm sido feitas por jornalistas e outras pessoas a propósito da «Nova Gramática do Latim», a que mais tenho estranhado é a que exprime surpresa pelo facto de a minha Gramática propor um vocabulário básico da língua latina. Tanto o Diário de Notícias como o Observador me perguntaram «porquê aprender aquelas palavras todas?» A resposta é simples: sem uma base de dados mental com palavras de uma língua, ninguém domina essa língua. Por isso, no ensino do latim e do grego que é feito no Reino Unido, por exemplo, está excluída a utilização de dicionários em testes e exames. O mesmo vale para a universidade. Perguntei recentemente a um professor de Cambridge se os dicionários continuam banidos dos exames de latim e de grego e ele respondeu, para meu alívio: «yes, thank God».
Por feliz coincidência, uma amiga que segue os meus posts no Facebook e que está a passar uns dias em Itália com as duas netas enviou-me a foto que veem, tirada num transporte público, onde uma estudante italiana está a segurar nos braços o seu Vocabulário da língua latina. Parece claro, pois, que em Itália (tal como no Reino Unido) a aprendizagem de vocabulário das línguas clássicas é vista como prioridade. Em Portugal, estabeleceu-se o vício do dicionário há muitos anos e isso é, no meu entender, uma enorme deseducação no que toca à aprendizagem do grego e do latim. O dicionário é, evidentemente, a pedra basilar do estudo fora da sala de exame: todos os grandes helenistas que conheci em Cambridge e Oxford vivem a estudar e a consultar o dicionário grego de Liddell-Scott, tal como os latinistas recorrem constantemente aos grandes dicionários de latim. O meu maior sonho, como é público e notório, é dotar a língua portuguesa de um dicionário Grego-Português de porte médio, que cubra a língua grega de Homero ao Novo Testamento. Mas aprender vocabulário de cor, na fase elementar da escolaridade, é fundamental. E daí a proposta do Vocabulário básico do latim que apresento na «Nova Gramática do Latim».
Aprender as palavras latinas é um esforço que traz no encalço uma mais-valia: leva-nos a entender melhor o que estamos a dizer em português. Uma utilização absurda de uma palavra portuguesa que ouvimos todos os dias é referir algo como «muito idêntico» ou «bastante idêntico» relativamente a outra coisa. O adjetivo «idêntico» descende em última análise de «īdem» em latim, que o Oxford Latin Dictionary define como «the same, identical with that previously mentioned». Uma coisa não pode ser mais (ou menos) idêntica relativamente a outra. Dizer que é «idêntica» implica, pela etimologia que o latim nos ensina, dizer que é exatamente igual.
Outra palavra cujo uso em português um latinista tem de achar divertido é «liberal». Ouvimos constantemente as pessoas a dizerem que são «liberais», normalmente em uma de duas acepções: ou se fala em «liberal» como antónimo de «conservador» (por exemplo «o Papa Francisco é mais liberal do que o seu antecessor») ou em sentido económico (onde a acepção vai mais no sentido de uma concepção capitalista do mercado de valores). O sentido original do adjetivo, no entanto, não é esse. Está implícita, no adjetivo latino «liberālis», a ideia de liberdade, mas na oposição entre homem livre e escravo. O adjetivo diz respeito ao estatuto de alguém (se livre ou escravo) e, por extensão de sentido, às qualidades próprias de uma pessoa de classe livre. Por isso a segunda acepção de «liberālis» no Oxford Latin Dictionary é «gentlemanly or ladylike». Em latim, «liberālis» comporta igualmente o sentido de «generoso». Portanto o seu antónimo, «illiberālis», não significa alguém que é conservador nas suas atitudes, mas sim alguém que é ignóbil, avarento ou «ungentlemanly»). Por outro lado, «liberālis» também se aplica em latim às artes, aos estudos e às profissões de pessoas de condição livre. As letras (mormente o estudo da língua grega) e as artes eram «liberais» por excelência no entendimento dos romanos. Se usarmos liberal nessa acepção, podemos até dizer que Bento XVI foi um papa mais liberal do que Francisco.
Claro que não estou a dizer com isto que se deva evitar a utilização já mais que estabelecida em português (e noutras línguas) de «liberal». Estou apenas a propor que o latim nos dá um sentido mais exato, mais nítido, do que estamos a dizer.
Já agora: juntar um pouco de grego ao conhecimento de latim dá outro sabor às palavras portuguesas. Se soubermos que em «obSCuro» estamos a ver a palavra grega que significa sombra («skiá»), perceberemos melhor a razão pela qual o obSCurantismo é o contrário do iLUMinismo (pense-se em «lumen» em latim, que significa «luz»).
Façamos como em Itália: convidemos os nossos jovens a aprender latim, dando-lhes essa oportunidade.