As tragédias seletivas não são menos trágicas
De um lado aqueles que dizem que é absurdo doar centenas de milhões de euros para o restauro de Notre Dame enquanto há crianças a morrer à fome, catástrofes como a de Moçambique, etc. Do outro os que dizem que isso é absurdo porque se assim fosse não se podia fazer mais nada, os que lembram que uma coisa não impede a outra, ou acusam estas pessoas de só se lembrarem dos pobres nestas alturas, instrumentalizando-os para praticar um moralismo barato.
Eu acho que no meio desta conversa, onde ninguém se entende, há pontos válidos de ambos os lados (ou até de outros, visto que isto não é necessariamente uma perfeita dicotomia).
Se por um lado é verdade que há muito que pode ser lido na dualidade de critérios com que as sociedades reagem a tragédias diferentes, com um maior menosprezo e menor atenção relativamente a tragédias onde morrem imensas pessoas (especialmente em países do chamado “terceiro mundo”), sendo sintomático da divisão entre humanos e de uma hierarquização de preocupações com relevância antropológica, por outro é sem dúvida muito importante preservar monumentos históricos.
Por alguma razão é tão horripilante e revoltante ver o Estado Islâmico a destruir monumentos na Síria e Iraque, com fanáticos de marreta na mão enquanto destroem a preciosíssima arte assíria com milhares e milhares de anos, objectos que, apesar de serem “apenas objectos e não pessoas”, carregam consigo uma enorme carga histórica, pertencem às relíquias (lato sensu) do passado, das várias civilizações humanas. É por isso que sentimos cada marretada, pelo menos quando temos a mínima percepção da sua importância e valor histórico.
Perdemos um pedaço de cultura humana de cada vez que se perdem monumentos, ruínas e outras instalações que testificam a história da humanidade à qual todos pertencemos, inclusivamente nos seus períodos mais tristes e críticos (como é o caso dos campos de concentração de Auschwitz, que nos lembram algo que jamais deveremos esquecer).
Desde os moais da Ilha de Páscoa, até Stonehenge, passando pelas Pirâmides de Gizé (e não só), Hagia Sophia, a Grande Mesquita de Djenné, Alhambra, Notre Dame, Machu Picchu ou Angkor Wat, todos esses monumentos têm um valor histórico e cultural inestimável, devem ser preservados (e bem preservados). É mais que compreensível que a perda parcial ou total de qualquer um deles consiga mover paixões de tantas pessoas, e isso não é um problema, é até desejável.
Triste é o que fica literalmente ao abandono, o que passa despercebido quando não devia, sabendo que isso também inclui outros monumentos e tragédias. Há que evitar nivelar por baixo aqui, não é a preocupação com Notre Dame que está a mais. O que lhe aconteceu continua a ser uma tragédia digna de preocupação.
João Pedro Martins é mais um cibernauta com um interesse pelas ciências, pelas artes e pela filosofia. É ainda o homem por detrás do projecto musical “Undogmatic”, naquela que é a sua incursão ecléctica e introspectiva pelo mundo do downtempo português