Feliz Dia do Trabalhador aos que resistem todos os dias
Lembro-me de querer esticar o último dia na minha primeira redacção como quem força o sono depois de acordar de um sonho bom para prolongá-lo. Sorte a minha, porque numa profissão que não obedece ao relógio, saí dessa primeira casa já depois do sol se pôr. “O mais importante é não desistir”, disse-me um colega fotojornalista na última conversa de elevador que tivemos. Parecia um conselho cliché, é certo, mas eu guardei-o com o optimismo que se fia na paixão e ignora a experiência.
Afinal, aquele fim era só um início que me tinha dado duas certezas gritantes. Um: nada me fazia mais feliz que ir para a rua de gravador e caderno na mão e voltar com as histórias que mereciam ou precisavam de ser contadas. Dois: Não ia ser pêra doce. Mas o cenário já estava azedo há muito tempo – agora que penso, nunca ouvi dizer que estava bem – e eu não era miúda para me deixar esmagar pela probabilidade de falhar sem sequer tentar.
Ainda descobria os cantos à menina do Tejo e à minha segunda redacção quando fui em trabalho com um colega que, na primeira meia hora de conversa comigo, me perguntou em tom jocoso: “Então, onde vai ser o teu próximo estágio?”. Não foi a forma mais delicada de quebrar o gelo, mas eu também pus a delicadeza de lado para lhe dizer que sabia bem ao que vinha. Seguiram-se meses intensos de aprendizagem e crescimento, mas mais uma vez o último dia bateu à porta sem cerimónias, pronto a ser o primeiro de alguém no dia seguinte. “Chegaste tarde ao jornalismo”, lamentou outra colega.
Mas eu (só) tinha 21 anos, uma licenciatura, dois estágios, um mestrado prestes a terminar e uma vida a ouvir clichés como “A tua sorte és tu que a fazes” ou “Os bons têm sempre lugar”. Ensinam-nos desde tenra idade que se cumprirmos todas as metas de desempenho e fizermos tudo direitinho, no final seremos recompensados com um lugar. Dizem-nos que o sucesso resulta exclusivamente do trabalho árduo que só depende de nós enquanto indivíduos. Mas nunca ninguém nos encoraja a ver o contexto decisivo que rege uma sociedade que muitas vezes nem sequer se esforça em ser uma meritocracia.
Ninguém fala no quão importante é estar no lugar certo à hora certa. Os bons não têm sempre lugar; têm lugar quando têm sorte. A sorte não somos nós que a fazemos; são as empresas e o timing em que as apanhamos. Sem timing, não há talento que sobreviva à eterna espera de contratos precários, estágios profissionais ou prestações de serviços. Este desencontro entre a expectativa e a realidade mente-nos de forma convincente e faz-nos crer que somos um falhanço, apenas porque não fomos bafejados pela sorte.
Só que quem quer isto nunca o quer pela metade. Ter uma visão romântica do mundo é quase uma condição de ser jornalista. Contra mim falo, já que levo um percurso acidentado completamente oposto à recta de quem teve o timing certo. Costumo dizer que é por paixão, não é por compensação, mas há dias em que esse combustível quase vira combustão. Questiono-me, bato com a cabeça, fico frustrada, mas sigo degrau a degrau, enchendo os pulmões em cada um como se estivesse no topo da montanha. E como é bonito olhar a paisagem enquanto sacudo as pedras nos sapatos antes de me voltar a fazer ao caminho.
Feliz Dia do Trabalhador aos que resistem todos os dias (neste e noutros ofícios).
Crónica de Maria João Monteiro
Maria Monteiro tem 24 anos e vive no Porto. Licenciou-se em Ciências da Comunicação na Universidade do Porto e fez mestrado em Jornalismo na Universidade Nova de Lisboa. Passou pelo Jornal de Notícias e pelo Público, trabalhou como freelancer e, actualmente, é jornalista da Time Out Porto.