Basqueiral: “É um festival onde pode aparecer qualquer coisa, até música clássica. Não queremos ser rotulados”
O Basqueiral regressa aos jardins do Parque de Santa Maria de Lamas nos dias 14 e 15 de junho. Foi com olhos postos no crescimento que a associação cultural Basqueiro preparou a terceira edição do festival de música e arte urbana: cresceu o número de palcos mas cresceu também a aposta na internacionalização; cresceu a vontade de construir um cartaz variado mas cresceu também a preocupação por fazer do Basqueiral um festival centrado em mais do que apenas música. A Comunidade Cultura e Arte sentou-se com Catarina Oliveira e Rui Canastro – dois dos principais membros da organização que faz com que o basqueiro venha acontecendo desde 2017 – para perceber o que se preparou para a edição de 2019.
O Basqueiral está a avançar para a terceira edição. Acham que já se afirmou como um evento cultural de referência em Santa Maria de Lamas e no circuito de festivais nacionais?
Rui Canastro: Sentimos que o nome Basqueiral é cada vez mais reconhecido. As pessoas simpatizam com o nosso festival, com a nossa filosofia. Apesar de ter crescido, continua a ser um mini-festival, com potencial para crescer. Mas sentimos esse reconhecimento, essa afirmação.
Se calhar uma atracção do festival é mesmo ele não ser demasiado grande…
Catarina Oliveira: …ser mais alternativo. Talvez. Quando um festival cresce bastante, vê-se logo uma mudança ao nível das empresas que o apoiam. Nós, naturalmente, temos vários apoios, mas são maioritariamente da região. Quanto a grandes marcas, temos se calhar duas ou três que vêem no Basqueiral uma oportunidade de comunicar com um determinado público mais alternativo, ligado ao rock.
Podemos dizer que temos tido, por parte da comunicação social e dos outros festivais do país que também estão mais ou menos no nosso nível, muito apoio. Somos muito bem recebidos e somos reconhecidos pelos nossos pares. Isso, para nós, é muito importante. O público da região já identifica perfeitamente a marca, identifica perfeitamente o festival, identifica-se com o festival, tem orgulho dele. No país em geral, não sei se temos essa projecção toda, mas também não sei se está nos nossos planos imediatos.
Rui Canastro: Exacto. A música alternativa não é aquela música que te faz criar um negócio para dar milhões. Temos vindo a crescer sempre um bocadinho de ano para ano. Fazemos questão que o festival se mantenha em Santa Maria de Lamas. O recinto é especial desde que haja conforto para os festivaleiros. Queremos que no Basqueiral nunca se sinta aquilo que às vezes sentimos em alguns festivais maiores, em que as pessoas não usufruem, estão esmagadas umas contra as outras, passam por longas filas de espera para beber uma cerveja. A gente quer continuar a oferecer música de qualidade, mas quando percebermos que atingimos aquele limite em termos de público, se calhar reformulamos um pouquinho a ideia.
Catarina Oliveira: Depois lutamos por outra coisa, que é a diferenciação. A lógica foi sempre ter um festival com qualidade artística. Fazer basqueiro é fazer basqueiro em vários sentidos: isso pode significar música mas também pode significar arte urbana, teatro, performance, graffiti. Naturalmente, o foco principal é a música, mas todas as outras artes estão ligadas. Interessa-nos ter um público que goste de muita música diferente, ou um público que nem sabe se gosta mas que, por afinidade, aparece e até passa a gostar e a olhar para a cultura de outra forma. Claro que nunca nos esquecemos do conforto de quem está a ver e a absorver isto tudo. Nos dias do festival, praticamente não paramos até vermos que as pessoas estão bem tratadas.
Rui Canastro: Nós não vemos o Basqueiral como um festival de massas. Isto é uma coisa criada com carinho, e queremos que se mantenha assim. Tem certas coisas muito genuínas. Uma boa parte do público que tem sido fiel ao Basqueiral aprecia muito isso, esse nosso lado de ligação com a comunidade. Não é um festival elitista, todos são bem-vindos, mas não queremos que se transforme numa coisa de massas.
Catarina Oliveira: O espaço é especial por si mesmo, tem uma história que vem das raízes de Santa Maria de Lamas, está envolvido com a construção da vila. Aquele parque vem do benemérito Henrique Amorim, que é uma pessoa amada transversalmente em Lamas porque investiu a vida toda naquela vila. Além disso, há ali um museu lindíssimo à disposição de todas as pessoas dentro do próprio parque, o que dá uma riqueza em termos culturais.
Rui Canastro: É um privilégio. Há festivais que também têm essas regalias, mas não são muitos. É um privilégio teres ali um museu de portas abertas, teres uma igreja com um padre que é um fixe e tem uma visão muito à frente, e teres os jardins que oferecem às pessoas um ambiente muito tranquilo. O BasqueirART apostou imenso na interactividade do museu este ano, vamos ter muitas surpresas. Compreendemos a importância da diferenciação. A música é o tronco, mas ficava super feliz se um dia estivesse no festival e alguém me dissesse, “as bandas eram fixes, mas eu também vim por causa deste vosso lado artístico”. Este ano, a aposta é fortíssima, dentro daquelas que são as limitações, mas estamos a tentar apostar cada vez mais.
Catarina Oliveira: O próprio museu, aos pouquinhos, vai conquistando alguns trunfos dele mesmo que depois lhe permitem interagir melhor com o Basqueiral.
Rui Canastro: Sim, o museu é o nosso grande parceiro.
Catarina Oliveira: O nosso irmão, como costumamos dizer. A Câmara Municipal é o pai.
Rui Canastro: A Câmara dá-nos a maior fatia financeira do financiamento do Basqueiral. Tens de batalhar por tudo o resto, bater às portas.
Catarina Oliveira: E fazemos isso tendo as nossas próprias profissões. Este é o nosso segundo trabalho.
Rui Canastro: Às vezes é o primeiro. Há fases da vida em que é o primeiro.
Catarina Oliveira: Sim. Além do amor que nutrimos por este projecto, todos nós adoramos cultura. Vamos ao cinema, vamos a festivais, vamos a concertos, vamos a galerias…
Rui Canastro: Tentamos fugir à rotina. O Basqueiral faz com que nos encontremos várias vezes, o que reforça a nossa amizade.
Catarina Oliveira: Discutimos muitas vezes, mesmo quando estamos nos nossos momentos de relaxamento, falamos sobre coisas que idealizamos para o Basqueiral. Aliás, ele surgiu dessa maneira. Estávamos a tomar um café em algum lado, e de repente pensámos, “mas e porque não…?”.
Rui Canastro: Também na altura havia esse vazio na zona.
Foi muito difícil “lançar a primeira pedra” em 2017 e construir um público forte e fiel?
Rui Canastro: Olhando para trás, acho que nos atirámos de cabeça, porque não tínhamos noção das dificuldades. O risco foi muito grande. Tivemos alguma ajuda, mas nada que se compare com o que se passa actualmente.
Catarina Oliveira: O segredo foi o compromisso. Dissemos logo que se alguma coisa corresse mal, todos iríamos resolver os problemas e compensar.
Rui Canastro: Por isso é que foi só um dia, riscos calculados, nada de extravagâncias. Ainda assim, conseguimos bons nomes. Fomos um bocado inocentes, porque não percebíamos nada daquilo, tínhamos zero experiência. Depois é que nos apercebemos da dimensão das coisas. “É preciso seguro para aquilo, é preciso licença para acolá”… Não é só as bandas e o som. Há uma infinidade de outras coisas. Depois de somares tudo, grão a grão, esses orçamentos transformam-se em coisas completamente diferentes do que inicialmente pensavas. Houve ali um certo pânico.
Catarina Oliveira: A sorte foi a Câmara adorar o projecto e abraçar-nos, porque senão não tínhamos hipótese.
Rui Canastro: O risco foi mesmo grande. Imagina que chove. Provavelmente, estourávamos logo à nascença. O que vale é que fomos super acarinhados pela população, fizemos vídeos engraçados que puxavam pelo patriotismo da vila, a malta adorou aquilo, foi uma onda de partilhas.
Catarina Oliveira: Esta geração adulta e pré-adulta… há ali uma fatia grande no concelho de Santa Maria da Feira que não tinha…
Rui Canastro: Sentia a falta de alguma coisa.
Catarina Oliveira: Não tinha um momento seu, uma actividade. Temos a Viagem Medieval, temos o Perlim, temos o Imaginarius, temos essas coisas todas. Mas então e a música? Houve ali uma oportunidade. O Basqueiral apareceu nesse sentido.
Vocês tentam sempre ter um cartaz diversificado do ponto de vista dos diferentes géneros musicais contemplados. Quão importante é manter uma certa imprevisibilidade e dar ao público uma oferta variada?
Catarina Oliveira: O Basqueiral não pode ser de um género. “Ah, é um festival de rock, é um festival de pop, é um festival de electrónica”… Não, é um festival de tudo.
Rui Canastro: Não queremos ser rotulados.
Catarina Oliveira: É um festival onde pode aparecer qualquer coisa, até música clássica.
Rui Canastro: Tu, não sendo rotulado, tens mais liberdade, não te sentes preso a uma clientela. Queremos que quem vem ao festival já esteja à espera de se surpreender. Nós sabemos que há pessoal que conhece algumas bandas, mas é rara a pessoa que conhece o cartaz completo, e é giro ver as reacções das pessoas quando se surpreendem.
Catarina Oliveira: Sim. Beber arte. A pessoa pode não gostar, mas pelo menos vai ouvir e ter uma opinião. O facto de sermos eclécticos dá-nos liberdade artística.
A Catarina tocou ligeiramente neste ponto há bocado e gostava de regressar por um segundo. O Basqueiral é mais do que música. Que outras actividades artísticas vão caber nos jardins do Parque de Santa Maria de Lamas este ano?
Rui Canastro: No ano passado, já tínhamos o Basqueiral Júnior. Este ano, foi reforçado. Vamos ter uma oficina para bebés. Vamos organizar duas sessões.
Catarina Oliveira: Muitos pais jovens tinham alguma dificuldade em ir ao festival, mas se temos actividades direccionadas para as crianças, a família já consegue desfrutar melhor da experiência. No ano passado, o Basqueiral Júnior foi muito curioso, porque alguns músicos, quando deambulavam pelo recinto, antes ou depois da actuação, acabavam por brincar com os instrumentos na zona das crianças. Foi muito engraçada essa interacção genuína.
Rui Canastro: Este ano, temos uma autora de cartoons a trabalhar connosco, que é a Sofia Neto. Tem obras publicadas, tem uma carreira interessante, é profícua para a idade, já deu aulas, tirou mestrado lá fora, é super talentosa. Lançámos o desafio de integrar o cartoon e fazer uma espécie de narrativa visual do que se vai passar ao longo dos dois dias. Ela vai criar uma pequena história a partir da imaginação dela e a partir do festival. O cenário é o Basqueiral, desde o primeiro momento até ao final. A ideia é ir partilhando os desenhos à medida que a Sofia os faz.
Catarina Oliveira: É uma forma interessante de criar conteúdos nas redes sociais, é diferente do conteúdo habitual.
Rui Canastro: E integra-se na nossa paixão pela arte urbana. É uma forma de homenagear essa arte, que em Portugal se calhar não é muito valorizada. E já que estamos a falar de arte urbana, temos de falar do mural participativo. Este ano, quando as pessoas chegarem a uma das entradas do Basqueiral, vão ver um mega mural, com mais de trinta metros de comprimento e quatro de altura. Aquilo foi um projecto de reabilitação de um mural que estava degradado. O projecto foi levado a cabo pelo Tropic. Fez-se um open call à população, que aderiu em massa, ao ponto de se esgotarem os pincéis, tivemos de comprar à pressa. Participaram os pequeninos e os mais velhos. O mural faz homenagem ao Henrique Amorim, identificando vários ícones do Parque. Qualquer lamacense olha para o mural e identifica-se.
Catarina Oliveira: Isto foi tudo num sábado, das oito da manhã às nove da noite. Foi um feito interessante. A comunidade foi como que chamada a reabilitar um espaço que é seu e que agora pode apreciar.
Rui Canastro: O Basqueiral não está ali só para usufruir do espaço que a vila proporciona. Também queremos acrescentar e reabilitar. Quisemos passar essa mensagem à vila.
Catarina Oliveira: Depois vamos ter um momento de performance no museu e uma exposição fotográfica com curadoria da Glam Magazine. O propósito é mostrar o “lado B” dos concertos. Na maior parte das fotografias, nem se consegue perceber quem é o artista. A ideia é mostrar aqueles momentos que às vezes escapam ao público. A galeria vai estar nos próprios jardins, ao ar livre.
Este ano, o Basqueiral consegue ter mais um palco, e tem também, pela primeira vez, artistas internacionais. Como olham para estes passos em frente?
Catarina Oliveira: Já tínhamos a internacionalização em mente há algum tempo.
Rui Canastro: No ano passado ainda discutimos, mas não fomos a tempo de conseguir tal coisa. Este ano foi óptimo, porque percebemos que conseguimos chegar lá, apesar de sermos uma associação cultural de Santa Maria de Lamas.
Isso é muito interessante. Não estarem a actuar nos grandes pólos culturais do país alguma vez foi uma dificuldade para vocês? Isso faz-vos trabalhar com mais empenho ou dá-vos mais motivação?
Catarina Oliveira: Inicialmente, quando a Câmara Municipal de Santa Maria da Feira decidiu abraçar o projecto, nós próprios perguntámos se haveria algum interesse por parte do município em centralizar, colocar o festival no centro da vila, visto que já temos grandes eventos a acontecer no centro da cidade. A Câmara disse logo que não ia fazer por estarmos no centro. Ficámos muito felizes com isso.
Rui Canastro: O festival é da vila, é da nossa terra, de Santa Maria de Lamas, e é assim que queremos que continue.
Catarina Oliveira: Não estarmos nos grandes pólos traz-nos vantagens. Os grandes pólos já têm muita coisa a acontecer. Os meses de verão já têm muita coisa a acontecer. Estarmos na vila dá uma certa graça, tem piada fazermos um festival nos jardins de um parque de uma vila com cinco mil habitantes. A estranheza também faz com que as pessoas tenham curiosidade e queiram ver o que se passa lá.
Rui Canastro: Em vez de sermos nós a ir ter com os artistas, é giro, pelo menos uma vez por ano, serem os nossos ídolos a vir ter connosco.
Catarina Oliveira: Depois é engraçado o lado pitoresco da coisa. Parece quase impossível os K.X.P. estarem ali em Santa Maria de Lamas. Olhamos para a tour deles, estão na Áustria, estão na Bélgica, estão na Alemanha, depois estão em Lamas.
Rui Canastro: É possível trazer outros nomes, outras ideias, outras bandas, mesmo para um festival pequenino como o nosso. É possível trazer artistas de renome. Não estamos a falar ainda do Thom Yorke, mas quem sabe? Se calhar um dia até vem ao Basqueiral porque ouviu dizer que aquilo é porreiro e quer fazer um concerto no museu.