Eliete e o Facebook
O Facebook é cada vez mais – a par do Google – um dos motores do Zeitgeist em que vivemos. Podemos ser contra – por diversas razões – ou a favor – por outras tantas e, às vezes, até por razões coincidentes com as que outros são contra –, mas não lhe podemos ser indiferentes. Escrevo isto a propósito do último romance da Dulce Maria Cardoso, o fantástico Eliete, um entretecido de múltiplas camadas de sentido que vão, com enorme subtileza e um ritmo magistralmente gerido, compondo aquilo que Virginia Woolf não desdenharia chamar “o grande rosto da vida”, declinação central do conceito de “moments of being” que funciona como ponto arquimédico de toda a sua obra.
Muito do romance vai ao osso da dicotomia fundamental da nossa época: a identidade real e a identidade digital. E Dulce insiste, e bem, na radical mudança que as redes sociais em sentido lato – nomeadamente o Facebook e o Tinder – têm vindo a operar na nossa vida. Mas não é um romance-diagnóstico. Está demasiado perto da realidade que procura dirimir e está sobretudo na charneira de uma mudança muito mais vasta do que a que lhe é possível abraçar. Eliete vê bocados da criatura movendo-se, percebe-lhe as pegadas, os efeitos nos sítios por onde passa, aquilo que arrasta consigo e aquilo que deixa para trás. E não se lhe pode pedir mais: a criatura está longe de ter chegado ao destino. Mas estas mudanças na organização da identidade e das suas hierarquias Eliete expõe-nas magistralmente, sobretudo quando incide sobre a decisiva inversão da hierarquia de importância das identidades reais e virtuais. O que doravante importa (apresentar aos outros) é uma cuidada construção da identidade virtual, sendo essa construção muito mais simples de fazer e de manter porque a estrutura própria do virtual é a do enquadramento fotográfico: ao contrário da realidade, cuja estrutura de fluxo impede obviamente a captação fragmentária, o virtual funciona – pelo menos por ora – mediante instantes meticulosamente escolhidos pelo portador dessa identidade. Às múltiplas perspectivas alheias incidindo impiedosamente sobre o sujeito, próprias do real, contrapõe-se uma generosa curadoria mono-ocular: é o sujeito que dita a sequência de perspectivas pela qual os outros acedem à sua vida. Enquadra, filtra, contextualiza, reconfigura.
E Eliete é o retrato deste processo em curso, preocupada com os likes ou os comentários de desconhecidas às fotos do marido, Jorge, zangada com os laços inautênticos que marido e filha exibem numa fotografia de conjunto, inquieta com a quantidade de likes e outros emojis recebidos numa foto na qual tem o cuidado de aprimorar digitalmente as pernas. E ao Facebook segue-se o Tinder e a neutralização progressiva da angústia a que corresponde a dissociação cada vez maior entre a identidade real e a identidade virtual.
Vistas as coisas de uma perspectiva aérea, parece não estarmos a falar de muito: uma mulher na meia-idade, a consciência clara desse processo, o desinteresse sexual do marido, o desinteresse total das filhas, a demência da avó, as múltiplas formas de perda e as poucas redenções possíveis.
Mas Eliete tem a rara virtude de transformar o quotidiano áspero e o sonho comezinho, passíveis em mãos menos seguras de provocar unicamente um longo e monótono bocejo, numa cartografia precisa de um modo de vida cuja disposição naturalmente caótica era refractária à sua compreensão – como todos os modos de vida. E às vezes é só isso que os grandes romancistas fazem: aclaram, organizam, mapeiam.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.