Festival Impulso. A arte de colocar uma cidade a palpitar
Impulsivamente, ainda no espírito do festival, começo com um “teaser escrito” para (tentar) aumentar a curiosidade de quem está desse lado e para, de certa forma, poderem recuar comigo até 23, 24 e 25 de Maio. Três dias. Três noites. Três palcos (os principais). Houve exposições diversas e documentários do Ciclo DocLisboa: A Minha Banda e Eu, de Inês Gonçalves e Kiluanje Liberdade, Phil Mendrix, de Paulo Abreu, Punk is not a Daddy, de Edgar Pêra, entre outros. Foram também apresentados “projectos” musicais oriundos das três Residências Artísticas: a primeira reuniu Surma, Tomara e o Tiago Bettencourt; a segunda Fred Ferreira (Orelha Negra, Banda do Mar), Pedro Geraldes (Linda Martini), Igor Jesus (videasta, escultor, artista plástico) e João Pimenta Gomes (músico e produtor associado a Tiago Bettencourt, Sara Tavares ou Márcia) e a terceira juntou Filho da Mãe, Miguel Nicolau (Memória de Peixe), EGBO e LAmA. Vimos muita coisa, mas especialmente ouvimos muita música. Muita, muita Música. A afluência é que foi menos do que seria expectável com este programa de qualidade.
Abrandemos então o ritmo. Este ano, o Festival Impulso invadiu a cidade e instalou-se na Igreja do Espírito Santo, na Fábrica Bordallo Pinheiro, no parque D. Carlos I, no Centro Cultural e de Congressos de Caldas da Rainha e no auditório da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha (ESAD). Esta é a segunda edição do festival, que nasceu em 2018, e é o resultado de uma colaboração entre alunos e professores da ESAD.CR e a Associação da Juventude da cidade.
No primeiro dia, por volta das 16h00, começou o concerto de João Pais Filipe na Igreja do Espírito Santo. Esta ermida de uma beleza singular foi um palco algo caricato para este baterista/percussionista extremamente talentoso, devido ao estado de deterioração em que se encontra e mais tarde tivemos a oportunidade de o rever noutro tom com os HHY & The Macumbas. Após uma breve interrupção chegou a vez dos Lavoisier. Curiosamente, interpretaram um poema da Judite Teixeira, escritora e poetisa viseense, que me parece que os descreve na perfeição. “Sinto os rumores duma convulsão” canta Patrícia Relvas. É precisamente isso que sentimos quando os ouvimos. No fim desta intensa actuação dirigimo-nos até à fábrica Bordallo Pinheiro para relaxarmos ao som do quarteto português Mazarin. O palco principal localizado no grandioso Parque D. Carlos I abriu às 20h. Este possuía dois palcos em cada extremidade da tenda. Palco Norte e Palco Sul. Monday (Cat Falcão) abriu as festividades e por momentos sentimos que era “Friday”, tal é a boa disposição que a sua música transmite.
Virámo-nos para (o palco) Sul, e instantaneamente ficámos rendidos à performance do duo de Barcelona ZA!. São duas pessoas e dois instrumentos que se desdobram em múltiplas pessoas e múltiplos instrumentos, ostentando música que mistura noise, ritmos do Bali e polimetrias africanas, hardcore e free jazz, física quântica e desenho livre… E no meio disto tudo, muito improviso consoante o que sentem quando actuam. O alfabeto é insuficiente para descrever o que vimos, ouvimos. A energia, alegria, humor, que colocaram em toda a sua actuação não deixou ninguém indiferente.
Ainda não eram 22h00 quando entraram em cena Tiago Bettencourt, Tomara e Surma. Uma semana de residência artística resultou em 1000 minutos de gravações sintetizados em 50 minutos de concerto que tivemos o prazer de assistir, e que mostrou também a cumplicidade criada entre aqueles três músicos distintos, visível durante toda a actuação. Entrámos facilmente no universo sonoro que eles construíram, em que se dissolvem uns nos outros e formam uma nova identidade como colectivo. Produziram melodias de uma beleza arrepiante que merecem ter visibilidade, continuidade e não ficarem restritas apenas a um concerto. A 50 minutos de uma noite de um festival. Torcemos para que o irrepetível se torne repetível. Fred Ferreira, Pedro Geraldes, Igor Jesus e João Pimenta Gomes (segunda residência artística) magicaram um conceito de espectáculo completamente inovador. Decidiram não apresentar o que compuseram ao vivo mas sim transmitir a música a partir do local das mesas de som, onde estes músicos se encontravam, e no palco só havia luzes a acompanhar o que ouvíamos. Foi singular mas arriscado porque infelizmente muitas pessoas não se aperceberam do que aconteceu e do que estavam a testemunhar.
Já passavam das 23h30 quando começou o concerto do versátil Bruno Pernadas. A sua música é uma mescla de jazz, space age pop, folk, world music e electrónica. Conseguiu pôr a plateia a cantar e a dançar e a pedir por mais quando o espectáculo terminou. O último concerto no parque ficou a cargo dos HHY & The Macumbas. Descrevem-se como um “laboratório de ritmo”, e essa definição não poderia corresponder mais à realidade. Hipnotizaram-nos com ritmos dissonantes e percussões explosivas. Em palco criaram uma espécie de orquestra visual e sonora em que o “maestro” foi o inconfundível Jonathan Uliel Saldanha. No final da noite, regressámos à fábrica Bordallo Pinheiro ainda a tempo de assistir à performance provocante da artista Aurora Pinho, que misturou na sua actuação dança, música, vídeo, dramatismo e bastante sensualidade. Expõe-se de tal forma que acaba por ter um efeito perturbador e magnético ao mesmo tempo.
No dia 24 de Maio as festividades na igreja começaram com Violeta Azevedo, que teve como companheiro de palco a sua flauta transversal, e que a ajudou a criar um ambiente mágico. As pessoas que iam aparecendo sentavam-se e absorviam a sua música mas a actuação soube a pouco, durando apenas meia hora. Tranquilamente, começamos o nosso trajecto até à fábrica onde às 18h00 iria decorrer o concerto de Sallim. Esta apresentou-nos o seu último trabalho: A Ver o Que Acontece.
O camaleónico Iguana Garcia entrou de seguida e animou a multidão que ia chegando. Este one-man-band mostra uma fusão afrodisíaca entre o pop dos anos 80, a música electrónica e o rock psicadélico, com uma simpatia, descontracção e alegria em palco contagiantes. Presenteou-nos com algumas temas novos, que constarão num próximo álbum, como a música “Horas Vagas”. Terminou com o fenomenal “60KF” e com “Eu já pensei em deixar de ser feliz para ser normal” na cabeça seguimos até ao parque para assistirmos à talentosa Nádia Schilling. A artista tocou guitarra, cantou e encantou quem estava presente com música que alterna folk, jazz, indie rock com sonoridades mais elétricas e sonoras. Infelizmente éramos poucos a testemunhar aquele momento tão intimista, tão melancólico, ajudando, de certa forma, à aura que emanava dos altifalantes.
Chegou a vez de actuarem Beautify Junkyards, esta banda lisboeta criou um ambiente folk psicadélico poderoso. A voz de João Branco Kyron ecoou pelo parque, entranhou-se em nós, e um excelente exemplo disso foi a versão da música “Que Amor Não me Engana” do Zeca Afonso, absolutamente arrepiante. Ainda a processar o que tínhamos visto entraram em palco os Riding Pânico. Viajámos pelo mundo do post-rock instrumental e esta actuação deixou-nos com a pica e energia para ver os Sensible Soccers. Mostraram principalmente o seu último álbum Aurora e desta forma despertaram todos os nossos sentidos. Durante cerca de uma hora embarcámos numa aventura ao som do baixo, da percussão e dos sintetizadores, a com a banda a proporcionar-nos uma viagem memorável.
“Curiosamente”, vimos um grande número de pessoas no concerto de Conan Osiris, e o “rapaz do futuro” deu um concerto irrepreensível. Ele e o seu inseparável companheiro João Reis Moreira vestiram T-shirts pretas com uma frase em hebraico que dizia“quem mata quem”, provando perante os nossos olhos que que foi um digno participante da Eurovisão 2019. Com orgulho, em uníssono, cantámos “Eu parti o telemóvel/ A tentar ligar para o céu/ Pa’ saber se eu mato a saudade/ Ou quem morre sou eu”. É incrível o quanto esta dupla tem crescido, o quanto têm aprimorado as suas performances. E ainda mais importante é o quanto têm cativado as pessoas por onde passam.
O mesmo podemos dizer do artista que veio de seguida, o acutilante e autêntico Allen Halloween. Este rapper prende-nos, abana-nos com as suas letras cruas e frontais sobre a violência, a pobreza, as drogas. Mistura hip-hop com rock com a sua voz grossa, agressiva e singular, que nos fala da vida como ela é, e é por isso que nos toca. Porque a vida também é isto. Também é madrasta. Também fere. No encore surpreendeu-nos com a música “Youth”, e admito que não consigo ouvir este tema sem me emocionar. O mesmo aconteceu nessa noite, a mim e a quem assistia. Ouvimos “Há uma montanha pa subir nigga vem tentar/ Não tenhas medo de cair nem medo de falhar/ Porque falhar é ficar a olhar, sentado no bairro parado/ A procurar um culpado por não teres tentado”, e as palavras embateram em nós, no parque, na cidade.
O último dia de festival ficou marcado pelas actuações dos magistrais Linda Martini, o irreverente Ângela Polícia, o contagiante Batida DJ e pelos talentosos First Breath After Coma, banda leiriense que entrou em palco por volta das 21h30. Apresentaram, maioritariamente, o seu terceiro álbum NU, como nos deixam sempre que os ouvimos. A qualidade crescente e a genialidade deste grupo de amigos é impressionante e nesta noite deram-nos autorização para viajarmos até ao seu íntimo. Foi isso que fizemos, e não voltámos iguais. Depois da viagem, só mesmo o artista Ângela Polícia para nos despertar. Cantou, gritou, seduziu, provocou; Fernando Fernandes é um artista multifacetado que vale a pena acompanhar e ao mostrar-nos o seu mundo alienado não ficámos indiferentes.
Com alegria dançamos ao som de Batida DJ enquanto aguardávamos, ansiosos, pelo concerto dos Linda Martini. E que concerto para terminar a noite, de um vigor voraz e explosivo, e nem a falha de energia que ocorreu fez com que os músicos desanimassem. Pelo contrário, redobraram energias, e continuaram, prosseguiram de uma forma imperturbável. O concerto de Linda Martini resumiu de certa forma o que foi este festival: três dias de uma jornada vertiginosa até ao fim.
Texto de Ana Moreira