David Carreira. Já não chega ser só artista
O que o caso do David Carreira demonstra é a forma deturpada com que lidamos com a realidade. Hoje em dia, ela já não tem o mesmo significado e as razões, pelo menos ao nível superficial, não são muito difíceis de explicar. Em primeiro lugar, a factualidade dos acontecimentos e do mundo que nos rodeia já não tem o mesmo papel na nossa sociedade, já não nos guiamos por ela, daí surgirem movimentos como o Flat Earth ou contra as vacinas por causarem autismo; tudo isto, com vídeos explicativos altamente credíveis no Youtube. Em segundo lugar, começa a existir um sentimento de desconfiança no que toca à verdade e ao que nos foi ensinado ou transmitido, inclusive (aliás, cada vez mais) pelos media.
Na semana passada, chegou às redações de alguns jornais e revistas cor-de-rosa um vídeo, que posteriormente foi publicado pelas mesmas, em que o cantor David Carreira e mais duas pessoas da equipa técnica tinham sido detidas pela polícia dos EUA. Segundo a manager do mesmo (Joana Sousa), eles não tinham a autorização necessária para utilizarem aquele espaço para filmarem. Não vou comentar o sentimento de estranheza que me invadiu ao ver o vídeo. Quero, sim, debater três aspectos deste caso: a mentira da manager, a jogada de marketing e enaltecimento do cantor e, por último, o impacto que isto tem na credibilidade dos media.
O que a Joana Sousa transmitiu aos media não é uma simples mentira dita por um cidadão comum durante o jantar de família. O acto de mentir é, por si, criticável. Porém, o acto de mentir aos media tem uma importância muito maior, já que cria um ambiente perigoso, em que os jornalistas não podem confiar em ninguém, porque a verdade não faz parte dos valores morais das pessoas. Ela demonstrou que não existem consequências para quem mente. Da mesma forma, o cantor vangloriou-se nas redes sociais e ainda teve a arrogância de criticar os media porque não souberam escolher as suas fontes e confirmar os factos. Ora, as fontes dos jornalistas foram as mesmas que agora os estão a criticar. Então o que ele quer afirmar, realmente? Com isto, ele quer dizer que os jornalistas não podem tomar como verdade o que uma pessoa diz, o jogo mudou. Aliás, quem acabou por sair vencedor desta polémica foi o próprio artista que conseguiu o apoio maioritário dos fãs e chegou a mais pessoas, porque foi notícia dos jornais e revistas que foram alvo de chacota. Criou-se, assim, um cordão protector à volta da personagem que é David, agora ele é intocável. Ainda se pode afirmar que tem sentido de humor e foi corajoso ao brincar com os grandes (os media).
A classe jornalística terá dificuldade, já o estava a ter, em sair desta luta com alguma dignidade e credibilidade. Acima de tudo, é cada vez mais difícil os mesmos reportarem a factualidade dos acontecimentos, quando eles já não conseguem comprová-los ou têm dificuldade a fazê-lo, até porque a verdade das redes sociais altera-se a si mesma tantas vezes que, no fim, já não sabemos quem a proferiu em primeiro lugar e qual era. Por isso, a crise do jornalismo não se incide somente no facto de os mesmos não se conseguirem actualizar aos tempos modernos. Recai também no facto de as pessoas já não quererem a verdade, mas sim aquela que lhes dá maior prazer: ora aquela que nos surpreende ora aquela que nos revolte mais. Então, as pessoas já não querem mais jornais ou jornalistas, querem influencers, famosos, drama, imaginação e criatividade, no que toca ao conceito de realidade. Por outras palavras, as pessoas já não querem a simples notícia de que o artista vai lançar um álbum ou um single, querem uma romantização fantasiosa à volta deste assunto, que envolve um set ao estilo de Hollywood: um paisagem americana, um polícia e um herói.
Cada vez mais já não basta ser-se bom no respectivo ofício, há que ter iniciativa nas jogadas de marketing, mesmo quando elas possam roçar a legalidade ou infringir completamente os valores morais. Não basta a criatividade como artista, é preciso saber vender a obra nas redes sociais e enganar os divulgadores ditos clássicos. Talvez o que mais me preocupa nisto tudo é a reacção dos fãs: pareça que estamos perante vítimas de lavagem cerebral ou de Síndrome de Estocolmo, “ele não mentiu, ele teve a criatividade para torcer a realidade com um tom de humor; por isso, é um génio cómico”. Bem-vindos à civilização do espectáculo, onde a realidade é um conceito pessoal e as redes sociais são o circo perfeito para personagens como Donald Trump ou Jair Bolsonaro se sentirem os deuses dos tempos modernos.