Gui Garrido: “Somos facilitadores de sonhos”
Há uns dias atrás fomos até ao bar do Atlas Hostel para entrevistarmos o Gui Garrido, Diretor Artístico do Festival A Porta. Tivemos uma conversa informal, emotiva sobre o que vai acontecer em Leiria de 14 a 23 de Junho. Ele abriu-nos “a porta” e mostrou-nos um mundo que vale a pena conhecer. Ora espreitem.
Comecemos pelo início. O Festival A Porta começou quando, como, porquê?
Antes de tudo quero só avisar que estou extremamente cansado, super emocional, choro por tudo e por nada. Estou nesta fase. Admito que uma das pessoas fundamentais para este projeto ter acontecido foi o meu filho, o Lucas. Agora, felizmente, já tenho duas flores incríveis no meu jardim que são o Lucas e a Lara, mas em 2013 nasceu o meu Lucas e ele abriu um mundo de vontades. Foi a primeira vez que parei, 3 meses, e dediquei-me só à paternidade, o que mexeu muito comigo. Acabei por voltar, muito mais, a Leiria para ele poder estar com os seus avós, com a sua Tia, com os primos, tios e amigos e isso, também, mexeu muito comigo. Esta reaproximação a Leiria proveio muito do amor, do amor paternal digamos. Regressei e vi uma cidade com uma massa criativa brutal, principalmente de agentes associativos, de gente como indivíduos que promove a atividade, que veste uma camisola (que quase que já vem colada na pele e não dá para despir) e que nos faz querer avançar e continuar. Ao mesmo tempo, no entanto, deu-me tristeza ver alguns espaços, como este onde agora estamos, abandonados. Ver uma rua direita bastante abandonada, com várias portas fechadas, muitos fantasmas. Muitos vazios. Fazia-me confusão a Praça Rodrigues Lobo, que é a vinte metros daqui ser o ex-libris da cidade, e não darem carinho nenhum para esta artéria fundamental. (Que foi uma das grandes artérias da primeira edição). Ver tudo isto fez-me pensar “uau vamos tentar juntar algumas destas pessoas para criar este projeto”. Lembro-me, perfeitamente, de estar a fazer os primeiros croquis e começar a imaginar isto em mil e um espaços, que eu senti, que não estavam a ter o carinho que mereciam de todos. Eu e a super equipa, que está por trás deste festival, acreditamos que compete-nos a nós, nós cidadão comum, plantar o nosso jardim, cuidar do nosso jardim. O jardim é a analogia daquilo que tu queres. O nosso lema foi fazer acontecer e isso requer um grande esforço e uma vontade coletiva. Quando somos mais vamo-nos incentivando uns aos outros. Se tu estás mais cansado agora agarro eu e vice versa. Concluindo o festival tem muito a ver com isso. Mais do que criar novas estruturas foi perceber a potência que existe. Olhar para o território, ver o que está mais frágil e perceber como podias injetar vida ali, colocar uma semente. Tentamos abrir portas que estão fechadas. Este é um dos espaços para nós fundamentais. Eu lembro-me de estar aqui a lavar e limpar tudo e, de repente, hoje, tem uma vida própria. O Atlas tornou-se um espaço incrível. Tem uma dinâmica cultural, de turismo, gastronómica, de encontro fenomenal. O bonito é saber que, cada um de nós pode abrir portas, e saber que alguém vai preencher esses espaços. O importante é que as pessoas se sentem a mesa, que falem sobre os seus sonhos, sobre como correu o seu dia. Na minha casa não havia televisão à hora de jantar e falávamos do nosso dia, do que queríamos para o futuro. Os nossos jantares temáticos tem exatamente esse objetivo – criar convívio, conversa. Este festival quer muito gerar encontro, encontros, quer muito criar espaço. A sobremesa musical é uma vontade de percecionar o objeto artístico de uma maneira muito mais íntima. É lindíssimo estares na tua sala a assistir a um pequeno concerto. Há uma permissão para a intimidade nestes jantares e depois noutros sítios, que vão sendo cada vez mais, como os jardins. A requalificação de jardins é algo que consideramos fulcral. A Vala Real foi requalificada. É complexo para um jardim que não tenha casas de banho, sombreamento, água potável, ser ocupado. Então o que tentamos fazer nestes dias é “está aqui uma coisa incrível, vamo-nos juntar e pensar o que falta aqui.” Com o projeto Jardim Cívico é a mesma coisa. Este é levado a cabo pelo coletivo O Til, um coletivo extraordinário com designers e arquitetos, e acima de tudo com sonhadores e trabalhadores. É um projeto muito complexo que teve a ver com a auscultação de vários moradores daqui, sabermos o que achavam da rua direita, do que achavam do centro cívico e do que gostavam que isto se tornasse. Este jardim é uma analogia para tudo na vida que é: se queres ter alguma coisa tens de trabalhar por ela. Em conjunto, que é mais fácil, e depois tens de a conseguir manter. Plantar é fácil manter é que dá trabalho. A minha mãe passou-me o amor pelas plantas e eu desde muito novo sempre adorei ir ao horto.
“Plantar no cimento” poderia ser impossível no entanto não o foi. Não há impossíveis?
Cada vez mais estamos a tentar fazer uma ponte entre a urbe e o verde. É necessário estarmos mais atentos. A verdade é que a sociedade anda numa velocidade que, por vezes, nos faz esquecer de certas coisas que, quando estamos mais perto da natureza, conseguimos sentir. E a verdade é que a vontade consegue germinar qualquer coisa, consegue rebentar qualquer bloco de cimento, consegue que qualquer projeto, casa, festival floresça. Por isso estamos no centro cívico, no centro histórico que tem necessidades reais de planeamento, de estratégia, de conhecimento, de carinho. Temos vontade que no meio do deserto surja alguma coisa. Mais uma vez a analogia! É um projeto arriscado e, ao longo de muito tempo, só vai funcionar se a comunidade tratar dele. É um estudo antropológico sobre os tempos que correm. Na fonte luminosa também haverá uma surpresa. Vamos tentar trazer a natureza para mais perto de nós. Mas sempre no centro da cidade. É um festival numa urbe com um apontamento verde.
Podemos afirmar que o festival tem, cada vez mais, uma componente, uma preocupação social, cívica, ecológica?
O projeto, deste inicio, teve sempre essas especulações e o fato de ser para todos também vai nessa direção. Esperamos que, cada vez mais, seja um projeto de índole social. Tem de existir responsabilidade, civismo, atenção. Por isso é que temos projetos para a comunidade mais vulnerável. Fazemos parcerias com a ACAPO, em que temos aulas de skate para cegos, com o Pé de Atleta que trabalha com pessoas com deficiências físicas profundas, com a InPulsar que trazem as suas gentes que tanto fazem no terreno. Nós aprendemos imenso com o processo, com o pensar como fazemos isto e porquê que fazemos desta maneira. Queremos que o Festival A Porta seja mais do que um festival de música. Claro que a música é um elemento importante, uma vez que também proporciona momentos celebratórios, de convívio mas A Porta é muito mais do que isso. Este ano estamos mais ecológicos, vamos implementar os copos reutilizáveis. Tentamos ter uma preocupação cada vez maior mas claro que tem de ser dentro das nossas limitações. Não conseguimos de um dia para o outro criar algo sem pegada ecológica. Queremos alertar as pessoas que o mundo é para ser tratado. O mundo que envolve também as pessoas, a educação, o respeito.
Sendo um festival urbano quais foram os maiores obstáculos que tiveram?
Eu acho que os obstáculos não foram por ser um festival urbano. Os obstáculos foram as premissas desde projeto. O difícil foi arranjar as chaves para abrir estas portas. Lavar as lojas todas, pedir aos vizinhos eletricidade. A dificuldade é estar numa rua direita que, por ser uma rua estreita, não é fácil ter postos de eletricidade e montar isso. Era mais fácil colocar coisas novas ou ir para o estádio, por exemplo, mas nós queríamos seguir as nossas premissas. O objetivo sempre foi olhar para o que existe e dar potência. Portanto, a priori, isso é sempre mais difícil. É mais fácil destruir uma casa do que construir de novo ou recupera-la. O que estamos a tentar fazer é dar vida ao que já existe. Portanto a nossa maior dificuldade foram as nossas premissas iniciais, que nos definem. As questões logísticas, digamos assim, foram o maior entrave.
Falando mais especificamente das pessoas da rua direita, que abrem as suas portas, gostaríamos de saber se, ao longo dos anos, tem havido mais pessoas a querer participar, a abrir as suas portas. Por exemplo na primeira edição houve atividades na loja do Sr. Manel, no Espaço Eça, aqui, numa lavandaria, na oficina do Sr. António… Tem havido mais adesões?
A primeira edição foi feita num modo louco, em tempo recorde. Ninguém sabia bem quem nós éramos, o que éramos e foi incrível ver a generosidade dessas primeiras pessoas que nos abriram as suas portas. Após a primeira edição tudo se tornou mais fácil. As relações foram-se sedimentando. Não só aqui, rua direita, como noutros locais e esperamos que se entranhe cada vez mais. Já conheço a Dª. Felismina há muitos anos mas não a conhecia como conheço agora. Este carinho que temos um pelo outro foi crescendo ao longo do tempo. Este projeto tem a sua ambição e só se mantém porque estas pessoas mantém-se também.
Basicamente podemos dizer que o Sr. António e a Dª. Felismina são mascotes do festival.
São pessoas fundamentais obviamente. Aqui há muita gente que é fundamental. Falo destes dois porque são dois dos mais velhos da rua direita e criou-se uma relação profunda, mas há muitos mais atenção! Temos também a Ervanária e todas as outras pessoas que já cá estão antes de nós termos sequer nascido. Continuam cá com um sorriso na cara e coração quente. É com muito carinho que, diversas pessoas, tem aberto as suas portas. O Mau Manel, o Espaço Eça, o Atlas entre tantos. O Sr. António está na oficina há sessenta e seis anos. É uma vida, quase duas vidas da minha. A vida que aquele espaço tem é incrível. As rugas das bicicletas, das motorizadas que ele já fez. Com uma ternura imensa, abre as suas portas e veste-se a rigor para aquele dia de festa. E o Sr. Ferreira? É inacreditável! Desde a primeira edição que vem com a sua concertina cá para fora. Este ano vai fazer uma performance com o Rui Pedro do grupo de teatro O Nariz. Vão ter a liberdade criativa para apresentar isso. Sinto muito respeito por estas pessoas e por todas que fizeram e fazem muito por esta cidade.
Passemos para a edição deste ano. Acontecerá, como nas edições anteriores, uma estreia de uma banda nova de Leiria?
Felizmente tem acontecido. Ayamonte Cidade Rodrigo anunciaram uma tour inteira por Espanha e só nós temos a felicidade profunda de eles fazerem uma paradinha em Leiria! Vai ser uma tour mundial em Espanha! É com muito carinho que queremos ter sempre espaço para novos artistas de Leiria, não só na música atenção. Mas claro que é com muita felicidade que houve estreias no festival. Jerónimo, Me and My Brain são alguns exemplos e fico extremamente feliz por esses desafios ganharem vida e continuação. Para nós faz todo o sentido apresentar Leiria ao mundo e trazer o outro mundo a Leiria. Que assim aconteça cada vez mais.
Este ano A Porta vai atingir proporções muito maiores. Qual foi o alinhamento? Como se organizaram? Quais os destaques?
Este ano fazemos cinco anos, meia década, é uma espécie de um marco. Como o festival tem os mesmos anos que o Lucas é engraçado ver como o festival cresceu mas continua a ser um bebé. Porque eu vejo o Lucas que ao mesmo tempo cresceu e está um ser humano incrível, mas, no entanto, ainda é um bebé, uma criança digamos. O Festival A Porta também o é e esperemos que assim continue, com o espírito de criança que todos nós temos. É muito bom verificar que cinco anos por um lado é muito tempo mas por outro não é nada. Esta dicotomia constante entre aquilo que já fizemos, já crescemos, já evoluímos, que é imenso, e ao mesmo tempo pensar no tanto que ainda há para fazer, ainda há para sonhar. Ainda há tanto para dar e receber. Esta edição possui destaques importantes. Temos uma Casa Plástica que por si só tem um programa incrível. Temos uma Portinha com inúmeras atividades. Temos a Villa Portela que tem quase um festival dentro dela. O Teatro José Lúcio da Silva, nosso fantástico parceiro desde o ano anterior, vai ser o anfitrião de um projeto de sonho – o SILVAR do Ricardo Martins e ainda teremos JP Simões e Manuel Cruz. A Stereogun, outra grande parceira, também vai ser palco de concertos. Temos o jardim cívico que por si só já é um projeto incrível. E temos também a grande estreia nacional do Jonathan Bree no Jardim Luís de Camões! Os First Breath After Coma vão fazer uma atuação de vinte e quatro horas na inauguração da Casa Plástica. Este era um sonho que já vinha do ano anterior. Podemos dizer que, este ano, esta banda é uma convidada do festival. Vai ter três momentos de destaque: as vinte e quatro horas de performance, um concerto alusivo ao seu último álbum NU e vai apresentar também o filme, o álbum visual. A CASOTA Collective, da qual fazem parte alguns elementos dos First Breath After Coma, são companheiros, parceiros do Festival. É com muita alegria que lhes dedicamos estes três momentos. Esta banda merece todo o nosso apoio. Têm levado Leiria para o mundo e acima de tudo são pessoas muito talentosas e que tem muito para dar.
A Villa Portela vai-se transformar numa Villa Omnichord, só dedicada a bandas desta editora. Como surgiu esta ideia?
Não vão ser todas as bandas desta editora porque algumas estão por outras paragens ou adormecidas. À Villa Portela sempre dedicámos projetos leirienses. Decidimos este ano dedicar a uma editora. A Omnichord Records é mais do que uma editora, é uma família. Tínhamos de celebrar isso! São pessoas tão importantes para a cena musical em Leiria que fez-nos todo o sentido lançar este desafio ao Hugo Ferreira e às bandas todas que vão atuar. Nós gostamos de dedicar certos momentos a alguém, a “alguéns” e celebrar em conjunto.
Podemos dizer que, neste festival, existem sítios específicos para certos intervenientes?
Cada vez utilizo mais o termo Projeto em vez de Festival, apesar que gosto da designação de Festival no sentido de ser uma festividade, uma celebração. Este ano, sim, há certas pessoas que convidámos para assumir as rédeas de certos espaços e ocuparem-nos. Nós gostamos de convidar pessoas e dizer “pensa no que gostarias de fazer que nós ajudamos”. Somos facilitadores de sonhos. Por isso gostamos de escutar. Temos as nossas linhas programáticas, editoriais mas é, cada vez mais, um projeto bastante transversal que vai do bebé ao sénior, a música é o mais eclética possível, a nossa exposição também é muito eclética e mostra várias manifestações artísticas desde a pintura, a escultura, o desenho à fotografia. Isto é, assumidamente, um festival familiar que tens horas mais ou menos tardias e propostas artísticas mais ou menos familiares. Nós convidamos todos para vir desde as crianças, aos pais, aos avós, aos tios e proporcionamos atividades para todos. A Fundação Millennium BCP é o nosso mecenas da Portinha. Esta desdobra-se em três coisas: trinta e seis atividades, as visitas guiadas das escolas à Casa Plástica e oficinas criativas (já temos inscritas cerca de 400 crianças) e temos a apresentação do projeto “Sob o mesmo Céu” que é desenvolvido juntamente com a InPulsar e que conta com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian através da iniciativa PARTIS – Práticas Artísticas para a Inclusão Social. É importante reafirmar que isto não é só um festival de música, esta tem sim um papel preponderante, mas é muito mais que isso. É um festival de pessoas para pessoas. Somos apologistas da educação pela arte. É tudo pensado durante muitos meses. Tentamos fazer o programa mais eclético possível para que cada um tire o que lhe faz mais sentido. Queremos acreditar que este projeto tem consequências. Queremos que crie impacto na cidade e que surja um espaço de reflexão, de critica, de conhecimento. E acima de tudo sou apologista que seja um local de convívio que bebas uma cerveja, uma água, um sumo e assistas a uma banda que te faça viajar para onde quiseres.
A parte gastronómica este ano vai ser semelhante aos anos anteriores ou também traz novidades?
Este ano continuam os quatro jantares temáticos com as sobremesas musicais. Os nomes dos jantares é que têm um floreado diferente! Temos o Barbecue à Americana, o Corridinho de Ramen, o Cambalacho de Caracóis e o Spicy Forrobodó. Decidimos celebrar de uma maneira diferente e desafiar os chefes e os anfitriões das casas de uma forma ainda mais celebratória. Eu tenho um sonho, desde 2014, de montar aqui, na rua direita, uma mega mesa mas isso implica que os bombeiros sejam super nossos amigos, implica outras estruturas que não temos para já mas lá chegaremos.
Durante dez dias há portas e portas e portas, à vossa espera, para serem abertas. Só tem de vir até Leiria e entrar no Festival.
Entrevista realizada por Ana Moreira e Idalécio Francisco