Dos origamis ao Basqueiro: uma grande pollockada numa tela em que as artes se encontram
Quem apanha a nacional 326 até Santa Maria de Lamas e navega pelas ruas modestas pensa que se enganou no caminho até ao Festival BASQUEIRAL. Mas, à chegada ao largo da Igreja, o posto da Super Bock anuncia algo mais que uma festa de aldeia. No entanto, o BASQUEIRAL, à primeira vista, não difere muito de uma: há álcool, um palco e bombos, que recebem os festivaleiros à porta da igreja para a batida inaugural. Mas esta é a única música de aldeia que vamos ter. À entrada do recinto, que não é mais que o Parque de Lamas, passamos pelo cartaz e horário dos dois dias de muita música e vemos rock e punk, vemos eletrónica, vemos hip hop e música do mundo. Muito cabe nesta freguesia de Aveiro.
Como festa de aldeia que se preze, a romaria arranca na igreja, mas não para missa; a não ser que se pense em Jorge da Rocha como um padre, pregando o sermão nas cordas do seu contrabaixo. O altar forrado a ouro estranha a luz roxa que, esta noite, o cobre. Os cabos e sintetizador pelo chão também causam estranheza, mas as palavras em inglês e o cruzamento harmónico do contrabaixo com os instrumentos que Jorge da Rocha convida ao altar (incluindo uma segunda voz) soam mais que adequados sob o arco da igreja e, aparentemente, ao público, que vai enchendo o espaço até já não haver mais bancos – algo incomum para esta igreja, certamente.
Saímos da igreja e entramos no Parque de Lamas. A luz difundida de final de tarde reflete nos frascos pendurados nas árvores, os pontos luminosos que, mais tarde, confundimos com pirilampos. À direita, disfarçadas nos arbustos do jardim, pousam molduras da exposição “Out of Bounds, Out of Box”, da Glam Magazine. Dali vemos “Lagos dos Cisnes”, uma instalação com animais que passam a altura de humanos, construídos em material transparente dobrado a origami com arestas de LEDs vermelhas, a flutuar nas piscinas rasas do parque. É cedo que nos apercebemos de que este festival explora outras artes para além da música: fotografia no jardim, escultura no lago, artes performativas no terraço – como descobrimos mais logo – e ainda BD por todo o lado. Apoiada no seu caderno e registando tudo à volta está Sofia Neto: a ilustradora foi convidada pelo BASQUEIRART para transformar o festival em quadradinhos, divulgados em tempo real nas redes do BASQUEIRAL.
Se argumentos faltassem para provar a multidisciplinariedade do BASQUEIRAL, o bando de inúmeros origamis – tema recorrente nesta edição – que parece pender do céu encaminha-nos para um bem forte: o Museu de Santa Maria de Lamas, em pleno parque e oposto ao maior palco do festival, oferece riqueza à boa moda do barroco e não só; nestes dois dias, o espaço é decorado e destabilizado da melhor forma possível com instalações musicais, esculturais e visuais, pensadas pela Companhia Persona, curadora do BASQUEIRART – o lado B vital do BASQUEIRAL.
O ar singelo do Museu visto do exterior engana a sucessão de salas e surpresas que a curiosidade vai descobrindo no seu interior. Mas este fim-de-semana há concorrência de cá de fora, que adia a nossa visita lá dentro: o palco Museu. É hora de jantar, mas os Solar Corona chamam. Ouvimos do público: “é sempre a abrir; que pedal do caralho”. Do palco improvisado, a resposta: “este festival é tão bom”. A formação faz jus ao nome do festival, com desgarradas fortes da guitarra e do baixo marcadas a bateria e derretidas pelo saxofone.
Dali a pouco, no terraço, a Companhia Persona dá aos que subiam pela rampa iluminada a velas uma performance que cruza a eletrónica, a dança e a luz em dez minutos revestidos das cores do BASQUEIRAL. Vermelho a fugir para o rosa e vários tons de azul pintam uma bailarina que sai de um casulo do tecido branco que cobre o pequeno palco. Esta performance viria a ser repetida mais três vezes durante o festival.
No palco principal, o pátio fica despido durante todo o concerto de NU. A banda faz basqueiro até depois da meia noite, dando as boas vindas a dia 15, que se vai revelar longo para Santa Maria de Lamas. De seguida, Nerve, no palco do Museu, ainda pede ao (pouco) público para não ser tímido e chegar um pouco mais para a frente. À parte de um grupo entusiasta e mais novo, há mais conversa que atenção às palavras cuspidas por Nerve.
Sobe ao palco principal um grupo trajado a rigor e liderado por um indivíduo excecionalmente parecido com David Byrne. A vontade de gritar “YOU MAY FIND YOURSELF” é imediata mas esta pessoa fala e canta em português. O fato azul traz um certo requinte que consegue não ser demasiado pretensioso – este filho separado à nascença do líder dos Talking Heads e os seus companheiros sabem o que estão a fazer no que diz respeito às escolhas de vestuário. Não é para menos: é de uma banda bastante moderna que estamos a falar. Os Glockenwise – verdadeiros bons rapazes com muito para dar – apresentam a um relativamente animado público de Lamas o seu rock que abraça a melodia sem abdicar da sua qualidade cerebral.
La Jungle foi indiscutivelmente o concerto mais aclamado da noite – a julgar pelas palmas e basqueiro do lado de cá. Os belgas não precisaram de recorrer ao português para falar aos de Lamas, que até o palco pisaram, num momento raro e especial de proximidade entre artistas, a dupla de bateria e guitarra, e recém tornados fãs.
O sol nasce cedo para a agenda recheada que se adivinha no segundo dia de BASQUEIRAL. Ao voltar ao recinto pela Rua dos Murtórios – ou entrada Este -, vemos outra das obras apresentadas no BASQUEIRART: o mural “com início e conclusão anterior ao festival mas que permanecerá temporalmente no espaço, como também na memória de todos os que participaram na sua execução”. Da cabeça do artista gráfico Tropic para as mãos dos que as quiseram sujar nasceu, em maio, um mural participativo com as mesmas cores que pintaram a performance do dia anterior, numa das paredes que segura o Parque de Lamas.
Já que o jardim está calmo (para já), aproveitamos para dedicar a tarde à tal visita ao Museu. À porta está Lígia Lebreiro, metade do génio fundador da Companhia Persona, que garante a curadoria artística do BASQUEIRAL em duas das suas três edições. Lígia acompanha-nos pela instalações contemporâneas que chocam com o barroco e tornam a experiência da visita multicamadas.
E porque esta é a palavra chave deste festival, há um espaço no Museu totalmente dedicado a miúdos e graúdos: desde oficinas de construção de origamis a instrumentos musicais com material reciclado – ou ainda o desafio “cria o teu próprio B” -, todos os elementos da família têm diversão garantida com o BASQUEIRAL Júnior.
Bem distante da música para bebés que alegra o Museu, os locais Blind the Eye inauguram as festividades lá fora. De volta ao fresquinho do museu, muitos descansam em pernas à chinês ao som de Acid Acid, persona eletrónica de Tiago Castro, ao final da tarde.
Shared Files começa quase uma hora depois da hora marcada, com problemas técnicos a frustrar cada tentativa de arrancar o concerto. Talvez por isso o público, em busca do fino de final de tarde, tarda a aproximar-se do palco Museu. O atraso iria adiar os concertos seguintes, mas não pareceu haver desagrado em passar mais horas em Lamas.
Com o sol a pôr-se, conversamos com dB num terraço com vista para o parque. Envergando um fato de treino como ninguém, o músico conta-nos que gosta dos discos como o seu hidromel: caseiros. Mais logo, o Conjunto Corona sobe ao palco para o momento mais energético do festival.
Das Caldas da Rainha chegam-nos Palmers. Como prometido, o trio liderado pela voz intensa que vem da bateria entrega muito basqueiro e até um tema exclusivo ao público, cujo entusiasmo estava mais virado para o jantar.
Depois de abastecer, a maior audiência do dia virou-se para Surma, no palco Museu. Os basqueirenses renderam-se ao jeito desengonçado e sons etéreos da menina de Leiria, que provou, sendo só uma – e descalça – que consegue encher um palco. Apesar do atraso da tarde, Surma cede às palmas e toca mais uma. “Longa vida ao Basqueiral”, diz, antes de sair para uma visita à Sala da Cortiça connosco, seguida de uma conversa entre origamis sobre “qualquer coisa”.
Apanhamos Cave Story antes de subirem ao palco para uma reflexão à volta de Punk Academics, o disco mais “cerebral” da banda das Caldas (em grande representação hoje), lançado no final do ano passado.
Do rock vamos ao garage punk que choca preconceitos: Vaiapraia abanam cabeças ao som de um terramoto elétrico, antes de darmos uma segunda oportunidade ao hip hop introduzido no dia anterior.
Do outro lado do parque entra Conjunto Corona, que consegue levar a noite a bom porto com o bom Porto que retrata nas suas letras. Foram chamados ao palco com “Gondomar”, gritado pelo público que se amontoava na frente, mas foi “Lamas” que acabaram por entoar noite adentro com a crew portuense.
Para fechar esta terceira edição do BASQUEIRAL, viajamos à Finlândia através da eletrónica kraftwerkiana dos K-X-P, um som díspar de tudo o que tínhamos ouvido até agora no festival. O mesmo se pode dizer de cada um dos concertos na agenda para estes dois dias em Lamas: multitalentos num espaço multidisciplinar.
Artigo feito numa colaboração tripla: texto de Inês Loureiro Pinto, fotografia de Daniel Dias e fotografia/vídeo de Sofia Matos Silva.