Atum e não só
Há muitos anos, numa aula de Latim II na Faculdade de Letras de Lisboa, um aluno perguntou-me se o nome do deus do mar «Neptuno» tinha alguma coisa a ver com o peixe «atum». Toda a gente desatou a rir na aula; mas a pergunta pareceu-me interessante porque, na verdade, ninguém sabe a explicação etimológica do teónimo «Neptūnus». Do ponto de vista morfológico, Neptuno pressupõe a existência de um substantivo «neptus» (com o sentido imaginário de «maritimidade» ou «aquosidade»), à semelhança de «tribuno», que provém da palavra latina para «tribo» («tribus»). Mas não existe em latim um substantivo «neptus».
De «atum», no entanto, não provém de certeza: pois «atum» em latim é «thunnus», palavra que chegou ao latim por via do grego θύννος (por isso há também a grafia latina «thynnus» para atum). Ao pensarmos em afinidades entre palavras gregas e palavras latinas, ocorre pensar que Neptuno se possa relacionar com «niptómenos» (νιπτόμενος), que significa «lavado». Lembro aqui as palavras de Sophia: «O mar azul e branco… / Onde o que está lavado se relava» (no livro «Dual», no poema intitulado «Inicial»).
Fazer a viagem em marcha-atrás de palavras portuguesas até chegar às latinas que lhes deram origem é um processo sempre fascinante pela forma como as palavras evoluíram assistemticamente do latim para o português. Se as palavras latinas «farīna» e «gallīna» deram em português «farinha» e «galinha», porque é que «piscīna» não deu «piscinha»? Ou «officīna» não deu «oficinha»? O sufixo morfológico é o mesmo: o mesmo, de resto, de «vagina» e de «urina» (esta última palavra cognata do grego οὖρον), que não pronunciamos «vaginha» e «urinha».
Quem olha para as palavras portuguesas «fim», «pão» e «pénis» está longe de imaginar que são formadas, em latim, com o mesmo sufixo morfológico: «fīnis», «pānis» e «pēnis».
Para muitas pessoas, estas questões são minudências palermas que só interessam ao número cada vez mais diminuto de latinistas no nosso país. O que é pena – pois saber latim dá-nos outro olhar sobre as palavras que usamos todos os dias; palavras que, afinal de contas, têm demonstrado a resiliência e a longevidade de edifícios romanos como o Panteão.
Quando li recentemente um artigo sobre a nova legislação nalguns estados dos EUA que proíbe, na prática, o aborto, não deixou de me fazer impressão o argumento apresentado por legisladores republicanos do sexo masculino segundo o qual não é a mulher que pode decidir sobre o feto, porque o feto não é pertença da mulher. Na verdade, o latim diz-nos algo de bem diferente: pois a raíz da palavra latina «fētus» é a mesma da palavra latina «fēmina», que significa «mulher».
Aprendamos, pois, um pouco de latim. Quando se trata de Neptuno e de atum, ainda nos podemos rir um pouco. Mas há outros casos em que a ignorância é bem mais grave.
na imagem: o Panteão por Giovanni Paolo Panini.