Ainda a vacinação, parte segunda e última
Um estudo em 2017 com dados de 2011 a 2013 revelou que a incidência de autismo na comunidade somali era de 1 em 32 crianças, enquanto que na comunidade caucasiana era de 1 em 36. Estatisticamente, a diferença é residual. Ainda assim, a comunidade somali, provavelmente sofrendo do defeito de óptica que consiste em ver o infortúnio próprio de forma hipertrofiada, não é convencida pelos números apresentados.
Michel Osterholm, ex-epidemiologista do estado de Minnesota, assegura que o medo incutido pelos anti-vaxxers é o grande responsável pela resistência da comunidade à vacinação. O argumento? “Lembrem-se, o sarampo é uma doença que dura entre cinco a dez dias. O Autismo é para sempre.” Embora a taxa de mortalidade do sarampo seja efectivamente muito diminuta, diria que o “para sempre” da morte de uma criança intencionalmente não vacinada é bastante mais cruel do que o “para sempre” do autismo.
O grande problema que ocorre quando a comunidade médica diz em uníssono – e com amplos estudos a sustentarem a afirmação – que “as vacinas não causam autismo” é a sua incapacidade, por outra parte, de determinar com suficiente grau de certeza o que de facto causa o autismo. E é nesse limbo, propício ao crescimento do bolor da desconfiança, que laboram todas as teorias da conspiração.
Em 2008 Charlie Sheen foi para tribunal para impedir que a ex-mulher, Denise Richards, vacinasse os dois filhos de ambos. O actor acredita que as vacinas são “um veneno”.
Em 2015, Jim Carrey tuitou contra o timerosal e o alumínio presente em algumas vacinas, acusando o Estado da Califórnia de fascismo corporativo e de envenenar crianças.
Billy Corgan, dos Smashing Pumpkings, diz não acreditar naqueles que fazem as vacinas ou no medo que inculcam nas pessoas para os “obrigarem a tomá-las”.
Jenny McCharty é provavelmente a grande porta-voz mediática do movimento anti-vacinação americano. Em 2005 anunciou que o seu filho Evan tinha sido diagnosticado com autismo. A condição manifestou inicialmente com ataques epilépticos. Quando estes foram debelados com tratamento apropriado, o estado geral de Evan melhorou substancialmente. Jenny continua a afirmar, com maior ou menor frequência de patacoadas pseudo-científicas, que foram as vacinas que causaram o autismo de Evan e aconselha os pais “a pesarem os prós e contras da vacinação de modo informado” (leia-se nas não tão subtis entrelinhas: vacine por sua conta e risco, porque as consequências da não-vacinação são despiciendas – a imunidade de grupo protege até os não vacinados (a chamada protecção indirecta) – e as da vacinação podem ser uma indesejada sorte grande na tômbola do autismo). Resta dizer que Jenny McCarthy foi namorada de Jim Carrey durante cinco anos.
É interessante verificar que o movimento anti-vacinação aparece irmanado a outros movimentos de teor conspirativo. Muitos dos que defendem a terra plana também têm uma posição crítica acerca das vacinas e dos seus supostos malefícios. A verdade é que as muitas teorias da conspiração compõem uma espécie de rizoma entrelaçado com múltiplos pontos de contacto e de tangente. E a natureza primordial desse núcleo rizomático é a suspeita de estarmos a ser controlados/enganados/amestrados por forças dissimuladas cujo propósito é destruir-nos/escravizar-nos/roubar-nos (riscar em cada caso o que não interessa). E esta criatura de múltiplas cabeças alimenta-se da ignorância que transforma muito rapidamente em desconfiança. Alimenta-se das sombras.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.