Dos hábitos
O meu avô materno morreu com cerca de noventa anos. Gabou-se durante largas décadas de nunca ter ido ao médico e de nunca ter tomado um comprimido. Quando lhe apareceram cataratas nos olhos, não deu grande atenção à coisa, até ficar cego de um deles.
Deixou-se relutantemente operar ao outro olho para logo se lamentar de não ter operado ambos. Quando o ia visitar, vendo ele já muito mal, acenava-lhe de longe e gritava-lhe
vende-me um desses borregos, o mais gordinho?
para ele responder, irritado com o despeito dos citadinos
não estão para venda!
Detestava médicos, hospitais e tudo quanto na cidade por motivos vários o afastasse do campo e dos seus afazeres.
Tinha outra característica peculiar: fazer sexo todos os dias; coisa que, a determinada altura da sua provecta idade, a minha avó deixou de achar piada. Criando a necessidade o engenho, o meu avô passou a dizer à minha avó, sempre que iam para o quarto, à noite
Maria, é a última…
E, durante quase vinte anos, todos as noites foi a última.
Numa dessas noites, a minha avó, tentando de algum modo fugir ao prazer que para ela se tornara um suplício, caiu da cama. Fracturou o fémur. Escusado será dizer que a minha avó tinha tanto apreço por hospitais e cidades quanto o meu avô. Nisso, coincidiam em uníssono.
Magríssima e picuinhas com a comida, enquanto esteve no hospital comeu apenas as bolachas Maria que a minha mãe lhe levava. Era para ter estado três meses mas ao fim de mês e meio estava pronta para ir para casa. Ao que parece, não tinha sinal da osteoporose que costuma afligir as mulheres a partir de uma certa idade.
A minha mãe ofereceu-se para a ir buscar ao hospital e levá-la para casa. Ao contrário da satisfação que esperava ver na sua cara com a ideia de ir para casa, a minha avó, cochichando, perguntou-lhe
não posso ficar uma semaninha ou duas mais?
A minha mãe, estupefacta
mas mãe, porquê?
E a minha avó
ai filha, nunca estive tão descansada…
A minha avó, que nunca tirou férias (o campo não tira férias, filha, respondia, quando a minha mãe lhe perguntava porque não tiravam uns dias para passear), descobrira na inesperada hospitalização um sossego que nunca conhecera ou de que não se lembrava. Provavelmente, o mais parecido que teve a vida toda com férias. Não pôde ficar essa semana adicional. Não disse uma palavra durante a viagem. O meu avô, sempre todo emoção, recebeu-a em lágrimas.
Ainda hoje penso no que ele terá feito enquanto a minha avó esteve fora.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.