Paredes de Coura (dia 4): a noite em que Patti Smith chorou diante da sua plateia
Chegávamos finalmente ao quarto e último dia do Vodafone Paredes de Coura. Observe-se a constituição do cartaz do palco principal: a pop e o rock alternativo de Mitski pouco tem que ver com o country rock de Patti Smith, que encantou uma vasta plateia de admiradores de longa data. E o britpop dos anos 90 dos Suede nada tem que ver com o hiphop de Freddie Gibbs e Madlib, um dos momentos mais dissonantes de todo o festival (à semelhança do que ocorrera com Skepta na edição do ano passado). Contudo, e apesar da sua discordância, os concertos apresentaram uma qualidade geral suficientemente interessante, que permitiu ao Paredes de Coura afirmar-se até à sua última noite. Foi assim o encerramento do festival das margens do Taboão.
Chegámos ao recinto pouco antes das 7 da tarde. No palco secundário actuava a cantautora australiana Alice Phoebe Lou, com uma voz grave que ressoava fundo, mas uma atitude fresca pintada a entusiasmo – diante da sua plateia preferida de sempre. “É a primeira vez que me estou a sentir uma super estrela num concerto meu!”, confessou. A recepção do público foi, efectivamente, deveras calorosa, à semelhança da música da própria artista, que tem um calor reconfortante, principalmente quando acompanhada dos seus movimentos espontâneos (que nos faziam lembrar uma energia próxima de Stella Donelly, que tínhamos conhecido dois dias antes). Uma introdução doce à última noite em Coura.
A poucos dias de começar um hiato de duração desconhecida, Mitski deu uma das últimas performances em suporte do seu disco Be the Cowboy. A artista, envergando roupa de ginástica, despiu-se da sua característica emoção e representou uma personagem hirta, cantando em poses e tentando ao máximo não deixar entrever os sentimentos de que a sua música é pejada – nem mesmo reconhecendo o público, salvo algumas excepções. À medida que vamos avançando por canções como “Why Didn’t You Stop Me” ou “Francis Forever”, vai-se denotando mais uma espécie de sofrimento em ter de se manter comedida, para um efeito verdadeiramente intenso. Alterando a disposição de uma cadeira e uma mesa, Mitski joga com o espaço, o seu corpo e com as suas emoções, pondo tudo a nu apenas através do seu tom e das suas palavras. O público vai aplaudindo cada nova pose e cada nova canção com renovado entusiasmo, seja ao som da drive mecânica de “Washing Machine Heart” ou da distorção épica de “Your Best American Girl”. O clímax vem com a penúltima canção, em que a encosta plávida fez silêncio para ouvir a balada “Two Slow Dancers”. Nesse momento, sabíamos que tínhamos assistido a um dos grandes concertos deste Paredes de Coura.
No palco Vodafone.fm, os Sensible Soccers estavam quase a jogar em casa. Perto das suas origens e num festival que já conhecem tão bem, a banda demonstrou como as canções de Aurora cresceram desde que as ouvimos na sua apresentação na Culturgest. O baixo de “Chavitas” ouviu-se mais apurado, a falsa guitarra de “Telas na Areia” nunca soou tão veranesca e “Elias Katana” converteu-se num épico de dança ao longo de mais de 10 minutos – introduzindo os elementos pouco a pouco, a banda tomou o seu tempo até fazer a canção explodir no seu baixo borbulhante e teclas jubilosas. O público bebeu da fonte dos Sensible Soccers como se de um néctar da vida se tratasse, reconhecendo o poder das fabulosas canções ao ovacioná-las como praticamente ainda não tínhamos ouvido neste festival – para gáudio da banda, que se mostrou verdadeiramente grata. O final fez-se ao som de “Sofrendo Por Você” e confirmou como os Sensible Soccers são uma das melhores bandas portuguesas a fazer música ao vivo hoje em dia.
Numa circunstância rara era chegada a hora da cabeça de cartaz atuar logo pelas nove e meia da noite. Patti Smith, uma das mais importantes marcas da country-rock do século XX, veio acompanhada de uma virtuosa banda que toca com ela há já muitos anos, e que o peso da experiência ajudou a enriquecer o espetáculo musicalmente. Patti, dona de uma irreverência muito política e de uma voz que – sendo hoje diferente daquilo que era – continua a fazer vibrar as emoções que correm dentro dela, tornou-se líder no púlpito de Coura; diante de uma plateia sedenta das mensagens de liberdade, paz e unidade de que artista foi bandeira.
Temas como “People have the power”, “Because the Night” – e, a fechar o concerto, “Gloria” – puseram várias gerações de ouvintes a cantar a uma só voz, numa festa saltitante generalizada que só terá tido comparação de efusividade com o concerto New Order e, curiosamente, de Parcels. Mas arriscamo-nos a definir o concerto de Patti Smith como mais emotivos: os temas invocados são mais sérios, são sonhos para a humanidade. E Patti vive-os intensamente. Num dos momentos chave do festival, e apesar da sua longa carreira e experiência, a artista desfaz-se em lágrimas diante do público de Coura. Visivelmente emocionada debaixo da maior ovação dos quatro dias do festival, Patti agradece. Na sua música corre um pedaço da história da resistência, e o apelo a não deixarmos afogar o potencial que cada um de nós tem. Magnífico, e cheio de alma – a música faz-se muito disto.
Foi um bom dia para a “electrónica do mundo” no palco secundário. No capítulo 2, após os Sensible Soccers, abrem-se de forma mais escancarada os portões do jazz (embora, é claro, um jazz filtrado e recombinado com muitas outras coisas). Kamaal Williams, teclista, é a cabeça por detrás do projecto. Mas permitam-nos desde já tirar o chapéu diante do melhor baterista do festival; achámos a bateria dos Black Midi sobrenatural, mas nem essa nos levou tão longe como a de Dexter Hercules. A complexidade rítmica que o quarteto alcançou na secção intermédia do concerto foi fonte fértil de imersão. A música de Kamaal tem esse condão, de viver dos pormenores acumulados, reunidos com propósito e muito bom gosto.
Não sabemos bem se pelo cansaço de quatro dias de festival vividos intensamente terão contribuído para este nosso julgamento, mas o concerto do rapper Freddie Gibs, na companhia do motivo produtor Madlib, não nos convenceu. A verdade é que o hip hop, sendo um género que marca o zeitgest da nossa era, se apresenta ao vivo com um formato muito próprio, que tem um guia de fruição distinto dos concertos dos restantes géneros (embora, é claro, não tão distante como os códigos da ópera ou da música clássica). O contraste é evidente: para baixo da régie, alguns milhares de pessoas saltam e fazem moshe com intensidade descontrolada, que levanta as maiores nuvens de pó do festival. Pela colina acima, muitos outros milhares estão sentados a tentar compreender o fenómeno. É um espectáculo fracturante. Embora a critica social de Freddie Gibbs nasça de um berço de resistência, o gangster rap não se coaduna exactamente com os apelos mais universais de Patti Smith – e o par de concertos, que se seguem um a seguir ao outro no palco principal- formam uma estranha dupla dissonante. Ouvimos vinte vezes o rapper incentivar-nos a gritar “fuck the police”. Não, obrigado. Freddie é um bom rapper; Madlib apresentou-nos a sua produção inspirada. Convenceram muita gente, e não convenceram outros tantos. Um festival também se faz de riscos.
Para fechar esta edição a organização escolheu o carismático e ofegante concerto da banda britânica Suede, que ajudaram a desenhar o rock e o britpop nos anos 90. O vocalista, Brett Anderson, foi o responsável por uma das mais magnéticas performances de um frontman a que já pudemos assistir. Vamos explicar da seguinte forma: em muitos momentos ao longo do concerto esquecemo-nos de que Brett estava a ser acompanhado por uma banda completa atrás de si. E isto não é uma hipérbole estilística. Encharcado em suor, e dando uso a um impressionante par de pulmões, o artista correu, saltou para o meio do público, cantou deitado, saltou; e tudo isto sem nunca deixar de cantar, frequentemente em tons altos e exigentes. Que máquina. O alinhamento dos Suede apresentou-se com uma diversidade sónica interessante, e os fãs da secção frontal estavam delirantes com o espectáculo. Infelizmente, pelo menos na metade superior do recinto, o volume esteve excessivamente alto, o que muito contribuiu para uma fruição menos agradável do concerto. Mas foi um final em força, e direito a encore.
Nos créditos finais do festival, e enquanto assistimos ao vídeo resumo desta edição – projectado, como sempre, nos ecrãs gigantes após o término do último espectáculo – pensávamos na edição deste ano de Paredes. Algumas ideias: um cartaz que manteve a qualidade do do ano passado, com bons cabeças de cartaz, e uma particular atenção por nomes mais históricos como o de Patti Smith e New Order. O terceiro dia terá o mais calmo, e o segundo dia talvez o mais forte do festival. Os Parcels foram uma das maiores revelações, coroados completamente pela plateia. Notou-se, principalmente nos dois primeiros dias e no último, uma sobrelotação no recinto; vinte e seis mil pessoas é pisar-se o risco. Não é agradável não se conseguir circular com facilidade no paraíso da música.
A próxima edição do festival acontece entre 19 e 22 de Agosto do próximo ano. Coura deixa sempre saudades – quando voltarmos, a festa vai continuar, no mesmo sítio onde a deixámos. O bom público de Coura vai hibernar, e tem regresso marcado para o próximo verão.
Reportagem com contribuições de Bernardo Crastes.