Ideologia de género
A utilização das palavras e o seu significado mudam ao longo dos tempos, usualmente a par da evolução dos valores da sociedade. A sensibilização da comunidade faz com que certas palavras passem a ser ofensivas ou incorrectas, é uma evolução normal. Um caso bastante evidente é da utilização da palavra ‘autista’ para caracterizar de forma simplista – ou simplesmente para ofender, quando estamos numa posição de poder- alguém que seja socialmente tímido ou tenha algumas limitações cognitivas ou sociais, tudo é colocado no mesmo saco. E a escolha de um termo ou de outro não é um mero jogo de semântica; trata-se de respeitar quem normalmente não é levado em conta: as minorias. Os movimentos de esquerda, onde se incluiu o feminismo ou a luta pelos direitos dos homossexuais, também sofreram mudanças até agora, no que toca aos valores pelos quais lutam e à própria opinião da comunidade. Porém, quando essa mudança de significado e valor ocorre às mãos de quem se sente, no mínimo, desconfortável com estes movimentos, aí, sim, fico preocupado.
A ideologia de género surgiu como arma política (à direita), pela primeira vez, pelo Vaticano nos anos 90 do século passado. E apareceu como contra movimento aos direitos das mulheres — elas estavam a ganhar cada mais força em países como a Alemanha ou a França —, para garantir que os valores da família clássica (o homem como centro da casa) não se extinguissem. Aliás, ao longo dos tempos, os movimentos anti-género costumam estar do lado das lutas nacionalistas, anti-imigração, anti-refugiados, algo curioso e não um mero acaso. Assim, a ideologia de género, apesar de ser um termo que se popularizou, costuma ser utilizado de forma incorrecta e mal interpretado e devemos ter atenção a isso. Assim, este é um exemplo claro de uma arma política que a direita regularmente recorre para atacar a esquerda, quando ela quer ajudar a sociedade a evoluir nos seus valores. Desta forma, tenta adulterar a mensagem e enganar-nos.
Agora, a grande questão: será que, como a Juventude Popular afirmou num cartaz, a Escola tornou-se no acampamento de férias do Bloco de Esquerda? Por outras palavras, será que a direita política portuguesa — o CDS, o PSD e o Basta! (ou Chega!, ainda não compreendi) já se juntaram à indignação — está, devido ao calor e falta de lutas inteligentes, a içar esta bandeira desnecessariamente e de forma até esquizofrénica? A resposta é, a meu ver, nim. É um ‘não’ no que toca aos ataques feitos pela Juventude Popular ou por certos colunistas, cuja argumentação se assenta na tal ideologia de género, já desmascarada anteriormente. Ou seja, uma campanha de desinformação é o mote do CDS, com um toque de populismo e muita discriminação. É um ‘sim’, no sentido em que as medidas da nova lei da identidade de género estão sempre, como todas, sujeitas à crítica. Portanto, diria que, mais uma vez, a direita portuguesa está a “fritar a pipoca” durante a silly season.
O despacho assinado na semana passada pelos secretários de Estado da Educação e da Cidadania e Igualdade é constituído por três grandes medidas. Em primeiro, existe a preocupação para que as escolas promovam a “organização de ações de formação dirigidas ao pessoal docente e não docente […], de forma a impulsionar práticas conducentes a alcançar o efetivo respeito pela diversidade de expressão e de identidade de género”. Por outras palavras, em nenhum momento se refere a uma tentativa de mudar a forma como as crianças se sentem, agem ou pensam; por isso, não vamos encontrar mais crianças transexuais ou homossexuais na escola, porque elas já existem de forma negligenciada e, agora, terão um espaço que lhes dá uma maior liberdade e segurança. Prevê também que todos os documentos oficiais (como as pautas das notas) passem a referir o novo nome, de acordo com a identidade autoatribuída, ou seja, não a de nascimento, já que só a partir dos 16 anos é que o jovem, com a autorização dos pais e do acompanhamento do psicólogo, pode alterar o nome do seu cartão de cidadão. Ora, como é possível ler num artigo escrito no Observador, isto é um passo importantíssimo no desenvolvimento deste grupo de crianças, porque o nome é também a sua forma de se apresentar à sociedade e uma das causas para estas crianças se sentirem discriminadas na escola, não só ao verem o seu nome na pauta, mas também no tratamento oficial nas aulas. Ao contrário do que muitas pessoas desinformadas (e que entram nos debates meramente para criar confusão) dizem, os nomes escolhidos por esses alunos têm de, naturalmente, pertencer à lista do registo civil a que todos nós nos temos de reger, não sendo possível ser tratada por “Robim dos Bosques e Companhia”.
A última proposta é a que pode despertar um debate mais intenso, principalmente pela sua aplicação prática. O que está em causa é os alunos em questão poderem, tanto com a devida autorização dos encarregados de educação como do director da escola, utilizar as casa-de-banho e os balneários que correspondem ao género escolhido pelos mesmos. Também ao Observador, várias mães de crianças transexuais afirmam que, apesar da boa intenção da medida, seria importante colocar nos balneários separadores para todas as crianças tomarem banho e se vestirem. Acrescentam que não só é importante para os seus filhos mas para todas as crianças, já que algumas não se sentem bem com o seu próprio corpo e a privacidade torna-se um ponto crucial. Esta discussão antes de ideológica (se calhar poderia até não existir) deve ser prática e deve ter em conta os lesados, a escola, os pais e os psicólogos. São eles os que compreendem melhor as dinâmicas em questão e são a melhor fonte de informação. E, assim, a discussão acaba por ficar limitada a garantir que a privacidade de todas as crianças é garantida: que a maioria não a perca e que a maioria a ganhe. Assim, as escolas têm de garantir, ao longo do tempo, que estes direitos sejam garantidos e que a comunidade consiga unificar-se neste tópico. No que toca àquelas pessoas que apresentam receios, para bem do debate, o melhor será apresentar exemplos claros e específicos e não tornarem a criança transexual num monstro que invade balneários.
Ao contrário do que o Presidente da Juventude Popular, Francisco Rodrigues dos Santos, afirma, a Escola não adoptou a ideologia de género como doutrina oficial. Decidiu, sim, progredir para um futuro em que as crianças transexuais, como também acontece com as homossexuais ou as que tenham, por exemplo, algum tipo de deficiência intelectual, não sofram de bullying, tenham apoio dos adultos e que consigam ter uma educação tão boa como a dos seus colegas. Na realidade, o que vai mudar é a forma como a comunidade estudantil, dos alunos aos professores e funcionários, aja como um colectivo de cidadãos e a isso eu chamo de progresso de valores e humanização da sociedade. Essa seria a única petição que assinaria.