“Variações”: Sérgio Praia esmaga na dor e glória de António Variações
Esta insatisfação, não consigo compreender… Servimo-nos da letra do artista António Variações para assumir que não ficámos imediatamente empolgados com o filme de João Maia. Digamos que foi mais um processo gradual de entrega, tanto ao filme como à composição avassaladora de Sérgio Praia, de tal forma que a sua fortíssima presença acaba mesmo por se impor à imagem forte que guardamos desse ícone do meio musical lusitano. Assim de repente não nos lembramos de um ator capaz de resgatar esse estatuto. Sorry Joaquim de Almeida, e obrigado João Maia e Fernando Vendrell.
Na verdade, importa falar de Sérgio antes de falar de António. Desde logo, pela perceção imediata de uma composição bem medida, a remeter de imediato para a teimosia do cabeleireiro que quis ser vedeta num país atrasado culturalmente e impreparado para o compreender nesses incaracterísticos anos 80. Isto mesmo sem a necessidade recorrer aos desnecessários tiques queer (até porque desajustados) para acentuar a sua bem colorida figura. De resto, Praia sublinha até da melhor forma toda a virilidade de Variações.
Já agora, não deixa de ser curioso como a parte mais significativa de Variações, ou seja todo o ponto de vista emocional – a recordação do ‘caso’ mantido com Fernando Ataíde, fundador da discoteca Trumps, na intensa composição de Filipe Duarte -, parece replicar também o melhor momento do novo filme de Almodóvar Dor e Glória (estreia a 5 de setembro), em que Banderas assume uma ‘sombra’ so realizador que também revive um caso de paixão antiga e de recordações não apagadas pelo tempo que passa. No fundo, ambos os filmes são dominados pela proximidade de uma dor e glória que vinca as personagens.
Foi mesmo na discoteca Trumps, em Lisboa, que tivemos o primeiro contacto com este projeto, numa visita programada e facilitada pelo produtor Fernando Vendrell a uma cena de rodagem, com direito a breve conversa com o realizador João Maia. Infelizmente não com Sérgio Praia, dada a celeridade com que avançava a produção, embora se tornasse evidente a forma como o seu corpo e a sua presença dominavam completamente a cena. Há o mimetismo, bem entendido, logo nesses momentos, mas ao vermos agora Praia percebemos como há mais lastro do que essa aproximação à figura tão marcadamente (deliberadamente) icónica. Percebe-se bem como no seu rosto, no seu corpo, cabem personagens bem diferentes e que, por certo, o futuro lhe trará. No entanto, é talvez esse espelho de possibilidades que também credibiliza a figura de Variações (afinal de contas não é dessa capacidade – a tal insatisfação – que domina o trabalho de ator?) e confirma a sua potência para outros voos.
É claro que esse estatuto de star sempre rimou bem com o lado mais musical do cinema. Veja-se o peso de Rami Malek em Bohemian Rhapsody, que acabou por lhe render o mais recente Óscar de Melhor Ator, ou de Taron Egerton em Rocketman. É até nesta (boa) onda de recuperação, já depois de A Star is Born, versão Bradley Cooper-Lady Gaga, também calhada para a passadeira dos Óscares, ou até do recentíssimo a propos de Bruce Springsteen, Blinded by the Light – O Poder da Música (se reinventa o que promete ser uma réplica de Yesterday, sempre com o recurso ao elemento exótico-indiano. Por isso mesmo, ficamos satisfeiros por Variações confirmar da melhor forma essa tendência, ajudando à partilha desta figura tão comentada mas tão pouco conhecida do nosso (ou outro) público.
Apesar de pertencer a uma geração que foi contemporânea de António Variações (portanto muito antes da homenagem dos covers dos Humanos), de um ponto de vista pessoal sempre foi mais o respeito pela teimosia em afirmar ‘a sua música e a sua persona’. Ainda assim retemos o nosso ‘ momento Variações’ recuperado da adolescência, salvo erro em 1982, quando nos infiltramos no corpo de segurança da festa do famoso jornal Se7e, nos concertos no Campo Pequeno, conservando ainda bem viva aquela perspetiva desse ser numa perspetiva em acentuado contra picado (porque olhávamos do limite do palco para cima) na exuberante dança dominada pelos movimentos irrequietos de Variações.
Por esta altura, já nos habituámos à tendência costumeira de avaliar e comparar o peso pluma da pequenez do cinema português diante dos pesos pesados da indústria, se bem que tal cliché nem nos tenha passado pela cabeça durante a projeção pública em que assistimos Variações. Talvez seja esse o maior elogio a fazer à produção de Variações (e até mesmo à distribuição, na aposta e campanha vigorosa da NOS) pois as comparações possíveis são mesmo dos casos mais ou menos recentes de produções de Hollywood movidas pela potência da música. A esse respeito lembramos ainda o incrível Control, de Anton Corbijn (2007), sobre a vida atribulada de Ian Curtis, o ícone dos Joy Division, talvez aquele que tenha uma maior afinidade artística com Variações. De resto, assenta-lhe bem até um lado punk em Variações – tanto no filme como na atitude do próprio António.
Tanto nos casos citados como neste talvez o que importa destacar é que foi sempre o trabalho do ator (a sua escolha, a sua entrega e prestação) a justificar os méritos e o sucesso dos filmes. É claro que Variações é um filme com as suas limitações, ou omissões, ou mesmo a imensidão de Praia que nos oferece esta versão ‘bigger than life’ de Variações.
Ao escrever este texto percebo entretanto que Variações conseguiu a proeza de se impor ao novo filme de Tarantino, Era uma Vez em… Hollywood e sagrar-se na maior estreia de um filme português este ano (superando mesmo o documentário sobre Tony Carreira). Ou seja, neste momento António Variações foi ainda mais pop que Quentin Tarantino, e Sérgio Praia que Leonardo DiCaprio e Brad Pitt. Perante este choque de – arriscamo-nos a dizer –, dois fenómenos de culto, é caso para sugerir: toma um comprimido que isso passa!Crítica de Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt.