É necessário mais diálogo
Um dos temas que tenho mais dificuldade em discutir é a cultura machista em Portugal. Neste momento, identifico com bastante facilidade esta realidade, através de exemplos do quotidiano da maioria das pessoas (para não dizer todas), mas é exactamente por ela estar tão enraizada que se torna difícil abordar o tema. Portanto, é um assunto suficientemente complexo para obrigar-me a ter alguma cautela nas afirmações que faço.
Para quem possa não saber, eu sou um cidadão privilegiado: homem e heterossexual. E estas características fazem com que, muitas vezes, a minha visão sobre a sociedade, como também sobre os meus actos, esteja toldada. Por outras palavras, é preciso fazer algum esforço para saltar para fora desta lavagem cerebral, a que chamamos de cultura e começar a compreender realmente o quão iludidos e anestesiados estamos como comunidade. A minha posição na sociedade faz com que, por vezes, não veja o assédio a acontecer ou não olhe para ele como tal; ou seja, ou estou distraído ou o meu subconsciente nega a realidade. Em certa medida, contribuo para este problema, sou obediente a este sistema.
Acredito piamente nesta ideia: o grande problema não são aqueles que desobedecem às regras, mas sim aqueles que obedecem sem questionarem por um momento sequer os seus actos. E um dos sintomas da obediência é a negação da realidade envolta: vivemos numa sociedade machista, sem sombra de dúvidas. Então, como é que é possível convencer os negacionistas? É esta uma das frentes de batalha, talvez a mais difícil, principalmente por este conjunto de pessoas representarem, pelo menos, uma parte demasiado elevada da nossa sociedade.
Se tentasse definir o assédio faria da seguinte forma: é um acto que tem por base um desequilíbrio no poder de ambas as partes. O perpetuador, geralmente homem, sente que pode dizer e fazer o que bem entender, sem quaisquer consequências para si, e talvez tenha razão. Porém, releva uma grande fragilidade psicológica, porque necessita de exercer esse poder sobre o outro, alguém que, aos seus olhos, é mais fraco. Ainda assim, na cabeça dele, nada está a fazer de errado, quando decide assobiar (exemplo mais comum). Ele está a ser engraçado, a divertir-se, como julgar? É exactamente por isso que é tão difícil explicar a um bully que está a abusar outra pessoa, porque ou não percebe que está a exercer esse poder ou acha que nasceu com ele, que é intrínseco ao seu género e uma prova da sua masculinidade. Porém, a questão que se coloca em cima da mesa é o facto de, como comunidade, termos decidimos que a mulher tem um papel secundário. O seu valor está ao nível do actor que vemos no fundo da cena de um filme – preenche um espaço, não o define ou o altera – e nesse ponto devemos fazer uma reflexão individual. Ainda assim, tenho de frisar o outro lado da moeda: também existem homens que são vítimas de assédio e quase nunca são referidos nos debates, daí ser importante utilizar a palavra vítimas, para garantir uma inclusão maior.
O que me preocupa mais no debate em volta desta temática é que, em geral, não se foca no cerne da questão. E isso é claro quando ouvimos alguém disparar ideias radicais e simplistas, para resolver um problema estrutural, como é este. Estas vozes, geralmente provenientes de franjas mais radicais da esquerda, tendem a demonizar o homem e o perpetuador, criando, assim, um fosso ainda maior entre os dois géneros; acima de tudo, descredibilizam os valores dos movimentos feministas, a igualdade. É importante referir isto: as mulheres precisam dos homens, no sentido em que, para conseguirem ter os mesmos direitos que eles e assumirem um papel primordial na sociedade, têm de ter o apoio do outro lado, do lado privilegiado, da mesma forma que os cidadãos negros americanos precisaram dos brancos, durante as lutas pelos direitos civis desta franja. Por isso, é crucial não colocar os homens à parte neste debate, não traçar generalizações sobre os mesmos.
No que toca a soluções, a complexidade da questão resulta numa solução não menos fácil. Olhando só para o assédio sexual na rua, facilmente concluímos que este não pode ser eliminado através de leis, é impraticável. De que forma é que é possível a vítima ter provas concretas de que alguém apitou, assobiou ou proferiu frases como “a que horas é que essas pernas abrem”? Esta é uma das grandes frustrações da vítima: a sua impotência, tanto para reagir como para provar. E existem duas razões para isto acontecer tão recorrentemente: por vezes, este abuso acontece em situações em que a vítima se encontra sozinha na rua (não só não está acompanhada por alguém, como também não há movimentação na rua) e, mesmo havendo outras pessoas, as testemunhas são altamente passivas, sendo elas uma das maiores perpetuadoras desta cultura. Da mesma forma, na violência doméstica, por vezes, invoca-se o excelente provérbio “entre marido e mulher não se mete a colher”. A própria alteração do código penal, onde as propostas sexuais na rua foram incluídas (na altura, denominada de lei do piropo), acabou por não ser consensual aos olhos dos diversos juristas e políticos. Uma das razões assenta no facto dessa mudança na lei ser de difícil aplicação prática e não conseguir abranger toda a palete de expressões ou contextos; ou seja, torna-se vaga o suficiente para um juiz mais conservador (ou machista) não aceitar a situação como assédio. Então, a verdadeira solução (demorosa e dolorosa para as vítimas, bem sei) assenta numa reforma da educação, porque olha para o problema a longo prazo e admite que esta não é uma luta fácil. E os alvos naturalmente são os jovens. Isto é possível de se fazer através da inclusão destes temáticas na disciplina ligada à cidadania, bem como aumentar a carga horária, dar mais relevância aos psicólogos e disponibilizar mais formações. Por outras palavras, dar os valores certos aos jovens, é esse o verdadeiro papel da escola, ao contrário do que estamos a praticar, actualmente.
Para compreender o estados das novas gerações, no que ao papel e o poder do homem numa relação, existem já alguns dados que traçam conclusões bastante preocupantes. Segundo o estudo “Violência no Namoro“, realizado pela União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) e pela secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, apresentado este ano, 27% dos jovens “não reconhece que o controlo” como forma de violência no namoro e 24% não reconhece que a violência sexual é também um ato de violência. No que toca ao controlo tóxico, ressalto actos como mudar o pin do telemóvel do companheiro(a) ou proibir de sair sem o companheiro(a). Quais serão os próximos passos? Assédio, abuso e violência, tanto física como psicológica. E as vítimas tornar-se-ão em que tipo de pessoas? Submissas, traumatizadas e desvalorizadas. Acima de tudo, vítimas de uma cultura de poder muito perigosa.
Ao contrário do que o humorista Diogo Faro uma vez afirmou numa crónica, a minha posição de privilegiado não me obriga a um pedido de desculpas a todas as mulheres. Obriga-me, sim, a um sentido crítico mais apurado e a uma iniciativa realmente útil nesta luta. Exactamente por ser homem, devo apoiar as mulheres e reagir quando as vejo sofrerem estes abusos e, sempre que possível, tentar educar os meus concidadãos, também eles privilegiados. Não estamos todos fartos de soluções simbólicas que, sozinhas, facilmente se desvanecem? Relembro que, depois de tanta manifestação, no espaço público e não só, pouco mudou na defesa das mulheres que sofrem de violência doméstica às mãos dos maridos; aliás, as mortes continuam a aumentar, inclusivo. Por isso, a pressão tem de ir para além do mero simbolismo de uma data ou de um pedido de desculpas, devem ser tomadas medidas claras pelos políticos e individualmente por nós, porque temos mais impacto na vida daqueles que estão ao nosso redor do que pensamos ou queremos admitir.
O que falta na nossa sociedade? Diria que é necessário mais diálogo, mais informação a circular, mais estatísticas sobre estas dinâmicas que não se resumem somente ao assédio na rua – há inúmeros tipos de assédio: físico, estético, moral ou virtual -, mais protecção psicológica às vítimas, mais educação nas escolas, facilitar as denúncias e pressionar os políticos a darem a cara pela luta. Nesse sentido, e no que toca ao papel individual de cada um de nós, aconselho informarem-se o máximo possível. Existem inúmeros projectos e associações que tentam apoiar esta causa e recomendo, particularmente, um projecto novo chamado ‘Línguas Venenosas’ (é possível acederem à conta a partir do Instagram). Por isso, continua a fazer sentido escrever sobre o óbvio, enquanto os abusos persistirem. Não estou a ser chato, simplesmente reconheci o meu privilégio.