Carga de trabalhos
Logan, de 2017, é certamente um dos filmes de super-heróis mais conseguidos de sempre. Chamar-lhe filme de super-heróis é já em si reduzir o âmbito do seu alcance e impacto; aliás, quem entrou para a sala de cinema convencido de que Logan era apenas mais uma sequência inofensiva de pirotecnias e lamechices telenovelescas a somar à longa fileira de filmes de super-heróis que têm temperado os baldes industriais de pipocas que se vêem agora nos cinemas deve ter, no mínimo, apanhado uma surpresa. O filme retrata um Logan envelhecido e praticamente desprovido do factor de cura que lhe permitia enfrentar ferimentos, doenças e idade com a mesma displicência. Para ganhar a vida, Logan conduz limousines.
A Jessica Jones da série da Marvel (que conseguiu, depois de uma excelente primeira temporada, esfrangalhar personagem, percurso narrativo e interesse em pouco mais de uma dúzia de episódios subsequentes) versa uma jovem super-heroína “para adultos”, i.e., apresenta uma personagem complexa, a braços com uma carreira de herói que nunca consegue assumir completamente e com problemas resultantes do seu alcoolismo. Jessica Jones trabalha como detective para pagar as contas e comprar whiskey manhoso.
Clark Kent, alter-ego do Super-homem que todos conhecemos e celebrizado no cinema pelo malogrado Christopher Reeve, é jornalista.
Matt Murdock, a outra face do super-herói Demolidor, é advogado.
A imensa maioria dos super-heróis tem um alter-ego e um emprego. Dir-se-á que assim estão integrados na comunidade e que, simultaneamente, protegem as suas verdadeiras identidades (no caso de Clark Kent e do Super-homem, bastam uns óculos de massa para converter o super-herói mais poderoso do universo DC num repórter pusilânime e introvertido). Mas para que precisam eles de um trabalho além do trabalho específico de super-herói? Ou de uma identidade secreta na pele de um anónimo proletário do dia-a-dia? A resposta não advém de uma qualquer especificidade da trama narrativa. A resposta tem que ver com um dos aspectos mais fundamentais da cultura americana, berço de todas estas criaturas sobre-humanas: o trabalho enquanto ponto arquimédico do valor do indivíduo na sociedade. Por muito irracional que nos pareça, deste lado de cá do Atlântico, que salvar o mundo não confira ao sujeito valor moral suficiente para não precisar de fazer outras coisas, a realidade é que o capitalismo americano, de braço dado com um protestantismo absolutamente desprovido da associação da culpa ao dinheiro, concebe o sujeito trabalhador como o grau zero de humanidade possível. Crer em Deus e pagar os impostos devidos são os dois pilares genéticos do Americanus Vulgaris.
Só assim se compreende que o homem mais poderoso do mundo seja obrigado a dividir o seu tempo e a amputar a sua produtividade salva-vídica assumindo a profissão de jornalista. Dou de barato que, com os seus poderes, ele possa trocar de identidade em átomos de segundos, mas, ainda assim, encanta-me pensar que aquela criatura passe metade do seu dia num exercício de miserável modéstia ontológica em vez de estar a carregar contentores de cereais para África ou a reflorestar a Amazónia. Isto bem planeado e escalonado, não lhe devia faltar coisinhas mais importantes que fazer do que escrever sobre a greve de comboios em Metropolis.
Este arvoramento do trabalho em condição sine qua non de humanidade é bem visível no modo como a maioria dos americanos vê o acesso a cuidados de saúde. Mais do que uma escolha resultante de uma cultura de liberalização económica, está em causa uma noção de merecimento do acesso aos cuidados de saúde que, nos Estados Unidos, é tão oneroso que só com um seguro de saúde (proporcionado pelo empregador) se torna possível. Só merece ser tratado quem ocupa as mãos de forma produtiva, diz o espartanismo americano.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.