Falha sistémica
Chile, Bolívia, Catalunha, Paris, Hong Kong. Em todos estes lugares, algures neste ano ou mesmo agora, as pessoas encheram ou enchem as ruas para revindicarem, de forma mais ou menos violenta, o cumprimento de determinadas aspirações de uma parte da população para as quais a política e os múltiplos instrumentos pelos quais actua não tem encontrado solução. Não quero dizer com isto que as múltiplas soluções requeridas existam e que os diversos governos as soneguem ou não as queiram implementar. Seria talvez necessário viver muitas vidas para compreender tudo o que se está a passar em cada um destes lugares. O que quero dizer é que o exercício regular da democracia, para estes cidadãos que vão para a rua confrontar a polícia ou o quem quer esteja do outro lado da barricada, não é suficiente. Falhou. E tem vindo a falhar estrondosamente, mesmo que o conjunto de sintomas noutros lugares pareça ser de certo modo mais brando, mais superficial.
E isto é um desastre. É um desastre porque a erosão de confiança resultante de décadas de má governação se traduz numa clivagem cada vez mais acentuada entre governados e governantes, abrindo espaço para que a demagogia e o populismo possam meter pé à porta e pouco a pouco franquear a entrada. Não nutro qualquer simpatia pelos populistas dos extremos ideológicos porque estou convencido de que a política é, fundamentalmente, uma arte de consensos. Estou convencido de que para obter x talvez tenha de conceder y, porque é impossível governar num espartilho ideológico fundamentalista. Cada um de nós é apenas um pequena parte de um conjunto muito heterogéneo de pessoas com necessidades e aspirações muito diferentes umas das outras. Quer isto dizer que devemos transigir relativamente a direitos e deveres fundamentais? Não. Quer apenas dizer que não devemos transigir unicamente em relação esses. Tudo o resto deve poder ser negociável.
Como votante errático sinto-me responsável pelo estado de semi-desesperança a que chegámos. A nossa jovem democracia parece ser unicamente jovem nas virtudes; nos vícios, parece ter séculos de experiência. Quando viajamos e perguntamos, perante uma situação de manifesta injustiça “mas como é que as pessoas se deixam tratar assim?”, devíamos parar e fazer essa mesma pergunta ao espelho. A canga de casos que diariamente enche as páginas dos jornais – todos ou quase todos eles a soro –, para além de ser capaz de nos fazer corar de vergonha, alimenta, mesmo que a conta-gotas, o taxista que há em cada um de nós. Temos um ex-primeiro-ministro a ser julgado. Aparentemente, ninguém se deu conta das dezenas de falcatruas que fez vida fora até lhe entregarem um partido e, subsequentemente, uma maioria absoluta e um país. Muitos dos ministros do actual governo privaram e trabalharam com o homem. Não estou a dizer que tenham ganhado o que quer que seja com isso.
Vamos até partir do pressuposto que não. Que foi um sacrifício. Mas anuíram. Compactuaram. E de cada vez que em qualquer partido se transige com a corrupção, o nepotismo ou o tráfico de influências, está-se a inocular veneno no sistema circulatório da democracia. Veneno que alimentará os milhares de ovos de serpente que existem e que sempre existiram e que esperam apenas por um clima mais propício para eclodirem.
A política portuguesa é aflitiva de ver. É de uma menoridade intelectual que faz brotoeja. Quando não dá asco, dá sono. As pessoas procuram nas frinchas dos discursos uma nesga de substância e de sentido em que se vejam representadas. Salvo umas excepções dispersas, os políticos portugueses dão a sensação de terem sido cooptados para entrar a meio de uma peça com instruções para fazerem o que o tipo do lado faz. É menos penoso assistir a um jogo de um campeonato regional qualquer de curling. E essa mediocridade, que todos merecemos por igual e que poucos fazem por contrariar, é o suplemento vitamínico das muitas bestas que espreitam uma oportunidade.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.