“Tommaso”, de Abel Ferrara: metaficção confessional
Estreado este ano no Festival de Cannes, Tommaso chega agora a Portugal, integrando a Competição do Lisbon & Sintra Film Festival.
O novo filme de Abel Ferrara é uma meditação sobre a criação artística, na fronteira entre o documentário e a ficção. Esta ténue linha onde se posiciona, é evidenciada pelo uso de não-atores (com exceção de William Dafoe), pela proximidade dos acontecimentos do filme com a vida do realizador americano e pelo efeito aparentemente amador alcançado, em diversos momentos, pela câmara.
Ferrara coloca em cena a sua própria mulher (Cristina Chiriac) e filha de 3 anos (Anna Ferrara), no seu apartamento em Roma, inserindo um personagem ficcional, interpretado por William Dafoe, no seu lugar. Em entrevistas, ambos já disseram que este protagonista representa um pouco dos 2 (ator e realizador), e, como personagem de ficção, foi ganhando outras características para além das suas. Mas é evidente o carácter auto-biográfico e auto-crítico da obra.
Traçando um interessante paralelismo com o seu anterior filme ficcional – Pasolini (2014) – acompanhamos Tommaso tentando conciliar a sua vida pessoal e familiar com a elaboração do guião de um filme, que, como em Pasolini, só existe na mente do seu criador. As semelhanças, revelam-se também na escolha de Ferrara em filmar o quotidiano, em pequenos momentos de ternura com a filha e frívolas discussões com a mulher.
O tema e abordagem do filme já lhe valeram comparações com 8 ½, de Federico Fellini, mas, em vez dos problemas relacionados com a fama e a produção cinematográfica, Tommaso apresenta um retrato mais mundano e pessoal.
Para além dos momentos familiares, Tommaso vagueia pela Piazza Vittorio, entre cafés, aulas de dança e reuniões de Narcóticos Anónimos. Estes momentos reforçam a força metaficcional do filme. Os bailarinos são dirigidos pelo protagonista como se de atores se tratassem e, nas reuniões, são narradas histórias ligadas ao consumo de drogas, dificuldade que o próprio cineasta enfrentou.
Não seria um filme de Ferrara sem subsistir um tom provocatório, sem a sua obsessão pela nudez do corpo jovem feminino e a frustração sexual, confrontadas através de sonhos e fantasias surreais, costuradas com o restante filme sem indicação explícita de se encontrarem fora do arco narrativo. Nestes momentos mais bizarros surgem também referências ao pecado e à religião católica, abandonada pelo norte americano em detrimento do budismo.
O filme vai balançando entre momentos mais próximos do documentário e outros mais surrealistas, com desenvoltura, criando um tom solto e livre, mas que vai deixando uma marca bem pessoal da vida do realizador americano. Haverá a tendência para considerar Tommaso como um filme menor de Abel Ferrara, mas aplaude-se a audácia do cineasta em expor e confrontar as suas inseguranças através da arte que tanto tem enriquecido ao longo das últimas 4 décadas.