Ruy de Carvalho, um dos expoentes da representação portuguesa
Ruy de Carvalho não é só homem para ser relembrado em datas emblemáticas ou fases de reflexão da representação. Muito para além disso, o nonagenário é senhor para se reivindicar na discussão da cultura nacional com as mais várias de fora, sendo um dos baluartes dos palcos e dos ecrãs lusos. Indiferentemente da dimensão do projeto que assumiu como parte constituinte da sua carreira, o ator conquistou e consagrou as plateias portuguesas como públicos onde a sua presença se tornou regular e sólida, com interpretações maduras e moldáveis à estrutura de cada personagem. À imagem de Eunice Muñoz, Ruy de Carvalho, que celebrou recentemente 70 anos de carreira, é um dos mais experientes e sencientes nomes da produção artística lusitana e é uma figura que permanece como essencial naquilo que é a sensacional criação e representação nacional.
Rui Alberto Rebelo Pires de Carvalho nasceu a 1 de março de 1927, na capital portuguesa. Crescendo e evoluindo no seio de uma família de classe média, sentiu que tinha as condições necessárias para dar forma ao seu sonho de representar. Assim, foi com somente 15 anos que se estreou no teatro, se bem que num estatuto amador. Dando os primeiros passos em pleno Estado Novo, estreou-se numa peça do Grupo da Mocidade Portuguesa de título “O Jogo para o Natal de Cristo“. Este trabalho teve a particularidade de ser encenado por Ribeirinho, um dos primeiros grandes nomes da representação em Portugal e que chegou a contracenar com Vasco Santana. Como formação profissional, frequentou durante cinco anos o Conservatório Nacional, terminando o seu curso em teatro com 18 valores. Também os seus irmãos João e Maria Cristina foram atores, assim como seria o seu filho João e o seu neto Henrique.
Desta forma, estreou-se profissionalmente em pleno Teatro Nacional no ano de 1947, durante o qual ainda estava no Conservatório. Encenada por Roger Ferdinand, a comédia “Rapazes de Hoje” foi a peça que acompanhou essa debute, organizada pela companhia Rey Colaço/Robles Monteiro, proeminente nos tempos de então. Nos anos 50, viria a afirmar-se num panorama nacional e essa ascensão iniciar-se-ia com a representação de Eric Birling no trabalho “Está lá Fora um Inspector“, redigido pelo autor britânico do século XVIII Joseph Priestley e tendo estreia no Teatro Avenida. Consolidando a sua posição no contexto representativo, entrou no Teatro do Povo, futuramente nomeado Teatro Nacional Popular. Sob a direção de Ribeirinho, cresceu sob a sua tutela e fez neste todas as temporadas sazonais no mesmo. Também na rádio e na televisão começou a provocar sensação, emergindo na RTP em 1957 no “Monólogo do Vaqueiro“, redigido originalmente por Gil Vicente.
No início dos anos 60, sentiu a necessidade de passar um passo independente e, logo após figurar no filme “Raça” (1961, de Augusto Fraga), criou o seu próprio grupo teatral, designado por Teatro Moderno de Lisboa. De pendor progressista, esta instituição visou revelar novos talentos e confirmar outros tantos, tentando evitar o espectro da censura que assolava a produção cultural. De forma a evitar mais constrangimentos desse tipo, move-se de malas e bagagens para a cidade do Porto em 1963, passando a dirigir o Teatro Experimental do Porto, encenando aqui pela primeira e única vez. A peça foi “Terra Firme“, adaptando a obra do português Miguel Torga.
Para além das habituais colaborações, juntou a estas muitas mais companhias, tais como a da atriz Laura Alves, a companhia Rafael de Oliveira e uma outra cuja sede se situava no Teatro Maria Matos e que atuava tanto no Brasil como em África. Estas viagens permitiram a redescoberta pessoal e profissional do ator e valorizaram-no dentro da lusofonia. Em 1977, já no pós-Estado Novo e depois de ter reunido o apreço do público na peça “Schweik na Segunda Guerra Mundial” (contando com a assessoria dos atores Raul Solnado, Armando Cortez e Lourdes Norberto), participou na reativação plena no Teatro Nacional D. Maria II e cooperou com o encenador Filipe La Féria em diversos trabalhos. Entre estes, destacam-se “Passa Por Mim no Rossio” (1992), “Maldita Cocaína” (1994) e “A Casa do Lago” (2002). Dentro deste período até à atualidade, participou em várias adaptações de dramaturgos como Molière, George Bernard Shaw, Anton Tchekov, Tennessee Williams e os portugueses Eça de Queirós e Luís de Sttau Monteiro. Como concretização de um sonho da sua carreira, e com a direção do encenador inglês Richard Cotrell, representou numa encenação do clássico “King Lear“, de William Shakespeare. Este trabalho marcou não só os 150 anos do Teatro Nacional, mas também as bodas de ouro da carreira do próprio Ruy de Carvalho.
Fora de portas, fez parte do concerto de encerramento da temporada artística do Teatro Monumental de Madrid, de seu título “Orfeu“, incluindo este textos do próprio Fernando Pessoa e música composta para a ocasião por parte do espanhol Pablo Rivière. Para além deste, e a convite do encenador Simon Suárez, foi protagonista da ópera Fígaro, no Teatro de La Zarzuela, também em Madrid. Quanto ao cinema, a sua carreira neste ramo começou cedo, figurando em “Eram 200 Irmãos“, de Armando Vieira Pinto, no ano de 1951. No entanto, a sua proeminência foi-se evidenciando com o tempo, participando em projetos da realização de nomes como Artur Ramos (“Pássaros de Asas Cortadas”, de 1963), António da Cunha Telles (“O Cerco”, de 1969), João Mário Grilo (“O Processo do Rei”, de 1990) e Manoel de Oliveira. Com este, foram vários os filmes onde participou, incluindo “Non ou a Vã Glória de Mandar” (1990), “A Caixa” (1994) e “O Quinto Império – Ontem Como Hoje” (2004). A sua voz tornou-se também parte constituinte de diferentes dublagens em filmes de animação, legado que prolongou das suas lides radiofónicas, nas quais também colaborava com préstimos ao nível da representação. No pequeno ecrã, figurou em variadíssimas novelas, incluindo a primeira de criação portuguesa – Vila Faia (1982). Grande parte do prestígio granjeado atualmente deriva precisamente desse profícuo currículo em diversas novelas e séries em canal aberto, não demorando a conquistar o apreço pela firmeza e destreza naquilo que é o engenho de representar.
Teve uma palavra na política, em especial no que respeita ao município de Lisboa. Tendo sido presidente do Conselho Nacional para a Política da Terceira Idade, foi mandatário nas candidaturas de Pedro Santana Lopes e de Carmona Rodrigues à autarquia lisboeta. Conforme mencionado acima, no que toca à sua herança familiar, teve um filho de seu nome João, para além da filha Paula, provenientes do casamento com Ruth de Carvalho. Para além destes, tem também três netos e uma bisneta. Para além do currículo familiar e profissional expedito, também ao nível das condecorações e dos prémios Ruy de Carvalho destaca-se. Assim, recebeu diversos Prémios de Imprensa para o Teatro e para o Cinema e arrecadou um Globo de Ouro e um Prémio Luís de Camões, entre outros. Ao nível da condecorações, recebeu a Medalha de Mérito Cultural em 1990, ascendeu ao grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique em 1993, ao de Grande Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada em 2010, ao de Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique em 2012 e, no dia 1 de março deste ano, a Grã-Cruz da Ordem do Mérito.
Ruy de Carvalho é um dos principais rostos da representação portuguesa nos seus três tempos, sendo eles passado, presente e futuro. Em todos estes, o que os une é, para além da sua presença, a sua influência e a grandiosidade e graciosidade do seu percurso, transmitindo com interesse e confiança as sensações e perturbações da personagem representada. Desde a comédia até ao drama, passando pelo histórico e pela novela, o seu nome é indelével do legado dos palcos e ecrãs que veiculam o expoente da produção em língua portuguesa. Com 70 anos de carreira e 90 de vida, permanece uma juventude que, apesar de amadurecida e compreendida nas diferentes décadas onde viveu e trabalhou, não tarda em se exprimir. A pujança renova-se numa omnipresença que permanece e envaidece aquele que reivindica a virtude do ser português.