Opinião. Ricky Gervais o mensageiro ressabiado ou o mensageiro do povo?
Entrámos numa nova década, mas como tudo o que resulta em Hollywood tem de ser repetido até à sua exaustão, Ricky Gervais voltou ontem (dia 5) ao comando dos Globos de Ouro, uma das mais mediáticas premiações da temporada de prémios americanos que antecipam os Óscares.
Cumprindo a sua palavra e modo de operações habitual, bastaram sete minutos para Gervais entregar um dos discursos mais polémicos da noite em que resumidamente manda as estrelas de Hollywood ficarem caladas e evitarem fazer discursos políticos. Mas tem ele legitimidade para o fazer? O que é, em 2020, aceitável um famoso dizer e defender?
Para elaborar um pouco este pensamento é importante citar o que foi ontem dito em direto do Beverly Hilton, em Los Angeles, pelo apresentador da noite (numa tradução livre):
“Se ganhares um prémio esta noite, não o uses como uma plataforma para fazeres um discurso político. Não estás em posição alguma para dares um sermão ao público. Não sabes nada sobre o mundo real. A maior parte de vocês passou menos tempo na escola que a Greta Thunberg. Se ganhares, aceita o teu premiozinho, agradece ao teu agente e ao teu Deus e vai-te embora”.
Além dos aplausos na sala serem algo contidos e as caras terem sido de desagrado no seu geral, as reações na internet foram bem mais expressivas e fizeram-se logo sentir. Surgiu uma rápida e grande onda de apoio a estes comentários de Gervais. Finalmente Hollywood estava a ter alguém a atacar a sua hipocrisia, finalmente estes seres de estatuto meio divino estavam a ser confrontados com a sua própria mesquinhice, insignificância e arrogância.
Ora bem, o grande problema aqui é que Gervais nos atira para um terreno pantanoso onde se confunde facilmente a comédia com um discurso de um cariz mais populista e, por isso, perigoso.
Além do seu set de piadas no monólogo de abertura ter sido razoável – nada de memorável, já que a própria persona que Gervais encarna está já francamente desgastada, não fosse a quinta vez a ser frontman da cerimónia e a quinta vez a ter a mesma abordagem cómica – o anfitrião acaba os sete minutos com talvez uma das mais infelizes tiradas de todos os seus números nos Golden Globes.
A comédia de Ricky Gervais, conhecida pela perspicácia e astúcia, transforma-se rapidamente num tweet de banalidades raivosas de Donald Trump. Ressabiado com a elite de Hollywood, sem piada e malicioso, ao ponto de potencialmente se tornar perigoso e abrir caminho a questões bem mais abrangentes como “quem tem, ou não, legitimidade de fazer política?”.
Sobre a legitimidade de escolher o momento de vitória, e a visibilidade que se recebe nesse momento, para fazer política apenas diz respeito aos vencedores em si. Os espetadores podem desligar a televisão ou o stream, o anfitrião terá de continuar com a cerimónia e a audiência na sala decide se apoia ou não a mensagem através de palmas ou apupos (por exemplo, em 1973, quando Marlon Brando recusa o Óscar para melhor ator pelo seu papel no The Godfather. Quem o “recebe” é Sacheen Littlefeather num discurso de apoio à comunidade nativo-americana e de denúncia contra o tratamento que lhes é dado pela indústria cinematográfica).
Ricky Gervais não é o guardião das mensagens que podem, ou não, ser proferidas nos Globos de Ouro e apesar de acreditar que ele também não o estava a tentar ser, a sua mensagem final não deixa de se mostrar prepotente e em tom de reprimenda. Como Lorraine Ali, no LA Times, escreve numa crítica à cerimónia: “o ambiente era já pouco animado, graças a um impeachment, a ameaça de uma guerra com o Irão e a uns fogos devastadores na Austrália. A última coisa que todos eles precisavam era de ter o sarcástico mestre de cerimónias a repreendê-los por terem esperança, a provocá-los por usarem a sua influência para mudar as coisas para melhor“.
Este tipo de humor vertiginoso de Gervais além de ser a sua imagem de marca, serve também para criar estes espaços entre as suas piadas, em que o comediante apenas está a mandar “bitaites” à sua audiência, a criticá-la não de forma engraçada, mas de como quem tem muita coisa atravessada e precisa de destilar um pouco do seu ódio. Além de não ser saudável, retira depois a piada ao que foi certeiro para trás (a questão do Epstein, a achega à Apple, as namoradas do DiCaprio). A última tacada do set de abertura não é comédia, é uma opinião em forma de reprimenda e que ainda por cima tenta limitar uma das liberdades mais essenciais à arte: a de ser política.
As estrelas de Hollywood têm legitimidade para ser políticas? Sim, todos nós temos. Aristóteles já nos dizia que “o Homem é por natureza um animal político“. Sabem elas do mundo real? Algumas não, outras sim (sendo que este conceito é por si só bem lato e difícil de definir, o mundo real americano é bem diferente do mundo real iraquiano, por exemplo, há sempre quem esteja numa posição mais privilegiada que o outro).
O importante aqui de perceber é que ninguém deve incentivar o limitar do poder político da arte e daqueles que fazem parte dela, sejam eles atores, músicos ou realizadores. Nem cair na redutiva noção de que isto é só entretenimento e que, por isso, não deveria ser político.
O entretenimento também faz parte da esfera da arte e a arte é política. Por isso, o cinema e a televisão também o são. Os artistas não são apolíticos por isso deixem-nos politizar os discursos de vitória que quiserem. Como sempre, podem-se ir queixar depois no Twitter ou no Facebook porque também tudo o que é uma opinião pública está sujeita depois ao escrutínio desse mesmo público.
Este texto foi escrito por Ricardo Rodrigues e foi originalmente publicado no Espalha-Factos.