Roberto Bolaño, o sul e a barbárie
“Ao atravessar o umbral, sentiu que morrer num combate à navalha, a céu aberto e atacando, teria sido uma libertação para ele, uma felicidade e uma festa.”
Jorge Luis Borges, O Sul
Nestes dias, o autor chileno voltou a estar nos jornais por mais um processo judicial que a sua viúva e herdeira perdeu. Desta vez, Carolina López acusava o crítico Ignacio Echevarría de atentar contra o direito à intimidade pessoal.
O caso acabou em nada, mas pelo meio, chateou muita gente. Mesmo depois de morto, Bolaño continua a ser o grande incómodo de familiares, amantes, críticos, editores e, acima de tudo, leitores.
Se um escritor não incomoda, é porque algo não está a fazer bem. Há violência, mas apenas por ser a única maneira de abanar mentes. É sobre essa barbárie, sobre esta vida ao limite que quero falar.
Antes de se dirigir ao hospital onde haveria de morrer, Roberto Bolaño, cuspindo sangue e em agonia, fez questão de se assegurar que o conteúdo de uma disquete não desaparecia. Essa foi, digamos, a sua última vontade.
No pequeno objecto de armazenamento digital encontrava-se a sua mais recente coletânea de contos: El Gaucho Insufrible, o último livro que havia de terminar em vida. Depois, claro, viriam as edições, as re-edições, as exclusividades certamente inacabadas que foram sendo encontradas nas gavetas do computador. Peças comercialmente cobiçadas pelo burburinho internacional que a misteriosa morte de um autor cria.
Porém, esse último livro revisto por Bolaño tem as suas singularidades. Todos os contos no Gaucho Insufrible, incluindo aquele que dá o nome ao livro, reflectem sobre a tradição gauchesca na literatura sul-americana em geral, e na argentina em particular. São contos que reflectem sobre os dois princípios inabaláveis da gauchesca: o princípio do homem mestiço exilado no campo e o princípio do campo como origem de tudo (o campo são sempre as origens, e o homem é sempre mestiço).
Porquê dedicar-se à literatura gauchesca? Suponho que é por encontrar nela os traços essenciais de toda uma tradição. Na gauchesca estão os preceitos mitológicos de todo um cânone literário. Bolaño sabe isso. Sabe também que assiste em vivo e em directo à decadência dessa arte literária. E como bom filho de pugilista e de uma ditadura atroz, assume a demanda, o peso quixotesco de ser ele o último grande autor do século na América hispânica.
Por falar em gaúchos e em demandas, a vida de Bolaño acabaria por partilhar semelhanças com a vida do protagonista do conto O Sul, de Jorge Luis Borges (Ficções, 1953): um bibliotecário municipal da capital que tem como derradeiro desejo regressar às lhanuras do sul da província. Uma febre que o assola acaba por atirá-lo a um sanatório, onde fantasia estar já a viver nos campos do sul. Neste paralelismo entre realidade e alucinação cai o pobre leitor, vítima da brincadeira borgesiana, sem saber afinal onde paira mesmo o protagonista. É esta sede do homem alienado, do crioulo desregrado perdido na barbárie e nas suas etnias que é análoga na biografia de Bolaño. Até o seu final trágico, febril e comovente, escrevendo desalmadamente contra o tempo (em boa verdade, escrevemos sempre contra o tempo), relembra o conto de Borges.
Imagino Bolaño como o guardião das chaves que fecham as portas de todo um movimento literário, remetendo-o ao compartimento do seu século. Com a sua obra sepulta de uma vez por todas aquele desventurado Boom e o seu enfadonho realismo mágico. Mas se tem uma chave para trancar o século XX, não devemos ignorar que no seu molho de guardião tem ainda outra capaz de abrir aquele que se desvenda à sua frente. Basta deitar os olhos nas páginas de Os Detectives Selvagens.
Afinal de contas, são os detectives selvagens que sem constrangimentos silenciam o passado literário das Américas, e numa catarse histérica mostram a crua realidade do continente, a violência desenfreada e o mal que emana do pavimento quente. São eles que dizem: até aqui chega Octávio Paz, Garcia Márquez, Vargas Llosa, Fuentes, também Carpentier, Onetti, Sábato e por aí fora. Bolaño sabe que vai ao fundo, e como bom suicida que é (ou que ambicionava ser, como os seus adorados decadentistas franceses) arrasta todos consigo para o abismo. Antes de cair, porém, tem o condão de apontar o caminho para o novo milénio. Esse caminho desenrolar-se-á já no póstumo 2666.
A incapaz tentativa domesticar a barbárie é uma tradição. É o resultado da mescla sanguinária de índios, crioulos e conquistadores, de um terreno com idiossincrasias próprias atravessadas pelos europeus. O resultado dessa tentativa fracassada de domar terminou sempre em tragédia, e na hora da mudança de milénios, ninguém soube pintar melhor com o sangue dessa tragédia do que Roberto Bolaño.
Afinal de contas um escritor tem de incomodar. Tem de pôr o dedo na ferida e, às vezes, levar a ferida ao dedo. “A realidade gosta das simetrias e dos leves anacronismos”, diz Borges algures a meio de O Sul. Algo frequente entre autores, leitores, histórias e personagens. Quem será afinal o gaúcho insofrível?
El Gaucho Insufrible editado em 2003 pela Anagrama em Espanha, não está traduzido para português. A restante obra do autor em Portugal é publicada pela Quetzal.